Quando ouvimos falar em Os sertões e em Euclides da Cunha, logo nos vem à mente a Guerra de Canudos. De fato, obra e escritor foram os grandes responsáveis pela permanência da história dessa Guerra na memória dos leitores interessados, tanto brasileiros quanto estrangeiros. Instalou-se, a partir de sua publicação, uma interpretação abrangente e necessária daquele bárbaro acontecimento no sertão baiano, no final do século XIX. Com minúcia nos relatos e descrições, objetividade trespassada pela constante irrupção da subjetividade e o preciosismo da linguagem, o livro se mantém referência para os investigadores atuais da história de Canudos, pois reconhecem que a leitura euclidiana se faz a base necessária à busca de novos elementos e à construção de outros pontos de vista. Além disso, o atribui sentido, pela via do discurso, a um povo anônimo até então, o sertanejo, como agente e protagonista da história e da literatura brasileiras.
A Guerra de Canudos (1897) é um acontecimento que tem, desde aquela época, modificado profundamente os escritos que dão sentido à política, à sociedade e à cultura brasileiras. Para isso também contribuíram a formação singular da comunidade de Belo Monte e a cultura dos homens do sertão. Apresentando-se como desafios às formas narrativas, principalmente à ficcional e à histórica, fatos verdadeiros e imaginários que desde então envolvem Canudos sempre exigiram novas interpretações, permitindo diferentes reescritas.
A organização social particular do grupo dos conselheiristas conseguiu, entre outras coisas, atrair a atenção do restante do Brasil, principalmente do seu governo republicano, para aquele espaço territorial brasileiro esquecido até então. Também os intelectuais voltaram-se para ele e o traduzem como lugar de formação de sujeitos construtores da história, integrando-o ao registro escrito que narrava a história do país. Com isso, a historiografia brasileira recobriu uma clareira que nela subsistia. Contar os sucessos de Canudos revelou-se uma busca incessante para compreender uma instância profunda da história brasileira, que emergiu no final do século XIX e se constituiu um fenômeno que ainda mantém velada grande parte de sua essência.
O trabalho primoroso que, efetivamente, sistematizou o episódio da Guerra de Canudos e trouxe uma teorização sobre as condições que a justificaram encontra-se na obra Os sertões, de Euclides da Cunha. Constitui-se um texto agregador de elementos literários, históricos e científicos. Busquemos a síntese de Roberto Ventura sobre a particularidade de Os sertões: "É uma obra híbrida, que transita entre a narrativa e o ensaio, entre a literatura e a história. Obra que oscila entre o tratamento científico e o enfoque literário, com excesso de termos técnicos e profusão de imagens. Daí resulta um estilo barroquizante e exuberante, repleto de dissonâncias e antíteses, cuja singularidade advém da aliança incomum entre narrativa, história e ciência". Nessa estrutura inovadora, Euclides depositou a culminância dos seus entendimentos acerca da Guerra e seu contexto. E mais, "foi além da narração da guerra, ao construir uma teoria do Brasil, cuja história seria movida pelo choque entre etnias e culturas. Recorreu à teoria do sociólogo austríaco Ludwig Gumplowicz (1838-1909), que considerava a história guiada pela luta entre raças, com o esmagamento inevitável dos grupos fracos pelos fortes. Alarmado com o avanço da cultura estrangeira, lançou seu brado de alerta em Os sertões: ´Estamos condenados à civilização. Ou progredimos, ou desaparecemos." Nesse embate, vê surgir, no sertanejo, miscigenado, a identificação da nacionalidade do Brasil. Aquele que a teoria tratava como fraco, Euclides prova que é um forte, e o define como a base do homem brasileiro do futuro.
De fato, em meio ao universo narrativo de Os sertões, surge, em sua centralidade, a questão da nacionalidade brasileira. Estabelece nossa origem a partir da miscigenação de raças, apontando as especificidades dos homens do litoral e do sertão. Suas observações e estudos justificam que a evolução do sertanejo é mais estável do que a do mestiço litorâneo, pois naquele não há a presença de componentes africanos. Os homens do sertão são os curibocas, uma mistura de brancos – os desbravadores paulistas que em tempos pretéritos exploraram o local - e índios; desses padrões raciais herdaram coragem, resistência e ousadia. Os mestiços do litoral resultaram dos brancos e negros, formando-se neurastênicos e desequilibrados.
Sendo assim, a ação da Guerra foi, para Euclides, o ataque da civilização do litoral contra a fortaleza racial brasileira e a cultura gestada no isolamento temporal e espacial do sertão. Esse ataque se encaminhava para o esquecimento quando aparecem Os sertões. Rompe-se, então, o silêncio que pairava há cinco anos sobre a Guerra, que acabou em 05 de outubro de 1897, como ele, emotivamente, narra no final do livro: "Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu até ao esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados". Vemos sintetizadas, nesse trecho, pelo menos duas idéias que sustentam o objetivo da escritura do livro. Uma delas é a denúncia da Campanha como crime e a conseqüente acusação dos culpados: a Igreja, os governos federal e estadual da Bahia e o Exército brasileiro; outra, a construção do sertanejo como o cerne da nossa nacionalidade.
As suas opiniões sobre o evento foram manifestadas, primeiramente, através do artigo A nossa Vendéia, publicado no Jornal O Estado de São Paulo, em 14 de março de 1897. Neste, refere-se à derrota da Terceira Expedição, da qual estava à frente o temido Coronel Moreira César, que reunia o desejo da elite brasileira de ver, sem mais demoras, a eliminação de Canudos. À negativa dessas expectativas Euclides buscou explicações na luta camponesa ocorrida na França, região da Vendéia, em 1793, uma reação à Revolução Francesa por parte dos camponeses monarquistas e católicos. Esse artigo motivou sua ida a Canudos como correspondente da Guerra. A partir de então, o engenheiro politécnico, o insubordinado militar reformado, o apreensivo republicano acrescentou às suas atividades o trabalho de repórter na Bahia, a serviço do jornal O Estado de São Paulo, destacado pelo seu presidente, Julio Mesquita. Seguiu para a Bahia com a Quarta Expedição e enviou ao Jornal, entre julho e outubro de 1897, 25 artigos.
Ao retornar para São Paulo, pôs-se a escrever sua obra inaugural, que veio a ser o resultado da sua subjetividade, da observação direta dos fatos, de pesquisas bibliográficas, entrevistas, anotações e recolhimento de notícias em jornais. Certamente, foi essa base plural, fornecedora de informações reais e ficcionais, que possibilitou ao escritor reconstruir, ao seu modo, os episódios daquele evento.
Desde que foi publicado, em 1902, o livro Os sertões transformou-se em fonte de pesquisa para historiadores e literatos que abordam o tema da campanha de Canudos. Suas afirmações e interpretações propostas no livro são repetidas, comentadas e contestadas, conforme a visão desses seus leitores.
O relato contido em Os sertões sobre a guerra de Canudos não foi o único a surgir naquele período próximo ao acontecimento. Robert M. Levine, em seu livro O sertão prometido, examina registros de estudiosos anteriores a Euclides, como José Aras, Dantas Barreto, Manuel Benício, Souza Dantas, Opato Gueiros, Alvim Martins Horcades, Aristides A. Milton, Frei João Evangelista Monte Marciano, Favilla Nunes, Lélis Piedade, Henrique Duque-Estrada de Macedo Soares, José Américo Camilo Souza Velho e César Gama. Todos narram suas visões do ocorrido. No entanto, a visão de Canudos traduzida no trabalho de Euclides da Cunha tornou-se a base da interpretação oficial do evento. Trabalhos publicados durante e após o término do conflito foram ofuscados pela sua análise. Tome-se como exemplo o ocorrido com Manoel Benício, correspondente do Jornal do Comércio, que testemunhou mais fatos do que Euclides e narrou-os em O rei dos jagunços. Mesmo tendo sido publicado três anos antes de Os sertões, seu livro não conseguiu se destacar, ao passo que, decorridos cinco anos da eliminação da comunidade conselheirista, é publicado o engenhoso livro de Euclides e o Brasil vive uma comoção geral. Na visão de Roberto Ventura, tivemos, em Euclides, um militar e um republicano desiludidos e um escritor notável, que conseguiu integrar a guerra a uma interpretação histórico-cultural extremamente complexa no Brasil. Talvez seja essa uma das principais razões de seu livro ter prevalecido sobre os demais relatos a ele contemporâneos. Ventura entende também que Canudos se tornou, com a interpretação de Euclides, o símbolo de um processo de modernização que se dá através de violentos choques culturais e políticos. Sem isso, ela seria mais uma comunidade ou um movimento messiânico massacrado e dizimado por tropas do governo.
É difícil justificar com precisão por que Os sertões, desde que se ofereceu à leitura, consegue comover o público. No entanto, podem ser lembradas algumas das características nele presentes que certamente colaboraram para isso. A fórmula que Euclides encontrou para apresentar a sua visão dos fatos é uma delas: promove o diálogo entre várias instâncias do conhecimento, constrói uma narrativa marcada por uma linguagem altamente poética e faz caracterizações dos sujeitos históricos que lembram as descrições de personagens romanescas. Notemos que há precisão, detalhismo e sugestões que tipificam a imagem do sertanejo transmitida pelo escritor. Observemos: "O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral. A sua aparência, entretanto, ao primeiro lance de vista, revela o contrário. Falta-lhe a plástica impecável, o desempeno, a estrutura corretíssima das organizações atléticas. É desgracioso, desengonçado, torto. Hércules-Quasímodo, reflete no aspecto a fealdade típica dos fracos."
Para sintetizar a sua concepção do sertanejo, Euclides elabora uma descrição que emerge da dualidade “forte/fraco”, fazendo um jogo com vocábulos que, no contexto de sua análise, tornam-se polissêmicos, como “raquitismo exaustivo”, “plástica impecável”, “desempeno”, “desgracioso”, “desengonçado”, “torto”. Essa dualidade ganha uma forma definitiva quando o sertanejo é comparado a um “Hércules-Quasímodo”, ou seja, o homem do sertão é uma combinação de heroísmo e força com monstruosidade. É no poder dos recursos próprios do discurso literário - polissemia, antíteses - e no vigor das imagens imortalizadas pela cultura e pela arte literária - Hércules, o grande herói grego, servindo de símbolo da força e da resistência do sertanejo, e Quasímodo, conforme fora celebrizado por Vitor Hugo, no romance Notre Dame de Paris, representando os aspectos desgraciosos do homem do sertão - que o escritor busca as estratégias para eternizar a figura do sertanejo. Hercules e Quasímodo são duas palavras aparentemente contraditórias que nos levam a pensar na relação de alteridade que se constrói entre elas. No sertanejo estão o Mesmo e o Diferente, que não se unificam dialeticamente, mas que definem uma identidade. Segundo Paredes, essa não unificação é coerente com o Brasil analisado por Euclides da Cunha, "onde o Outro estava inserido no escopo do Mesmo. Paradoxalmente, apesar de o sertão estar localizado nos ´limites da civilização´ sem a ela pertencer, o sertanejo por sua vez era ´ o cerne de nossa nacionalidade´"
Na seqüência de sua descrição, há outros elementos igualmente duais que caracterizam o sertanejo, articulando uma imagem externa de "homem permanentemente fatigado" com outra interna de ser resistente e ágil. Assim, o andar sem firmeza e a postura abatida são uma aparência que ilude, pois desaparece na exigida ação do sertanejo. Diz Euclides: "Naquela organização combalida operam-se, em segundos, transmutações completas. Basta o aparecimento de qualquer incidente exigindo-lhe o desencadear das energias adormecidas. O homem transfigura-se. Empertiga-se, estadeando novos relevos, novas linhas na estatura e nos gestos; e a cabeça firma-se-lhe, alta, sobre os ombros possantes, aclarada pelo olhar desassombrado e forte; e corrigem-se-lhe, prestes, numa descarga nervosa instantânea, todos os efeitos do relaxamento habitual dos órgãos; e da figura vulgar do tabaréu canhestro, reponta, inesperadamente, o aspecto dominador de um titã acobreado e potente, num desdobramento surpreendente de força e agilidade extraordinárias." Percebemos que a Euclides interessa o sertanejo como fortaleza, pois a descrição da aparência de preguiça inerente é, na verdade, o recurso contrastante à natureza forte e defensiva daquele homem do interior, que se faz potência no sertão e congrega, ao seu ver, os aspectos da identidade do país.
O autor explicita esse interesse já nos textos escritos durante a Guerra de Canudos, onde podem ser encontrados os primeiros elementos tipificadores do sertanejo atribuídos por Euclides, como também o início do processo de apreensão do sertão. Neste, homem e natureza, desconhecidos, estão imbricados, como mais tarde ele vai tematizar em Os sertões. A flora agressiva para os que a desconhecem é providencial para o sertanejo. "Além disto o homem do sertão tem, como é de prever, uma capacidade de resistência prodigiosa e uma organização potente que impressiona. Não o vi ainda exausto pela luta, conheço-o já, porém, agora, em plena exuberância da vida. Dificilmente se encontra um espécime igual de robustez soberana e energia idômita". O sertanejo, agora, está incorporado ao discurso do autor, que se dirige ao grupo social que, até então, identifica e explica o Brasil oficialmente, a elite. Aos seus integrantes, Euclides passa a apresentar o homem do sertão como raiz étnica e identitária do país, revisando a imagem de ser um caso de atavismo histórico, um obstáculo à evolução do país. No artigo publicado no dia 25 de outubro de 1897, no Jornal O Estado de São Paulo, já chama a atenção do país sobre a necessidade de redirecionar o olhar sobre o sertanejo. Escreve: "Sejamos justos - ha alguma coisa de grande e solemne nessa coragem estoica e incoercível, no heroismo soberano e forte dos nossos rudes patricios transviados e cada vez mais acredito que a mais bella victoria, a conquista real consistirá no incorporal-os, amanhan, em breve, definitivamente, á nossa existencia política". Em Diário de uma expedição, formula o mesmo pensamento, manifestando, explicitamente, um compromisso social do Brasil: "Depois de nossa vitória, inevitável e próxima, resta-nos o dever de incorporar à civilização estes rudes patrícios que – digamos com segurança – constituem o cerne de nossa nacionalidade". A idéia de o sertanejo ser o cerne de nossa nacionalidade condensa toda a força e o sentido da visão euclidiana acerca da identidade brasileira. Nela está o germe da razão principal de Os sertões, com o que se explicam o tom denunciador e o sentido incriminatório contidos na narrativa.
Tudo isso se solidifica no processo que envolveu o autor e lhe deu condições de assim entender o sertanejo, o cerne. Inicialmente, por força do cientificismo de que se impregnou em sua formação acadêmica e das impressões que lhe passaram os inimigos de Canudos, Euclides, sem ainda ter ido ao sertão nordestino, entendeu o sertanejo negativamente: julgou-o uma ameaça à República, um caso de atavismo da nacionalidade brasileira. Nesse processo, ainda o apresentou como selvagem desviado do rumo da civilização, a quem só restava o desaparecimento. Essa condenação dogmática foi cedendo espaço para uma visão advinda do real com que se deparou quando chegou ao sertão. O que ele viu e sentiu no ambiente da guerra não lhe permitiu insistir nos (pre)conceitos com que sustentou as leituras explicitadas até então. Certamente, a observação direta do cenário logo após uma batalha lhe removeria os sentidos. Este relato é revelador disso: "Quando á 1 hora da tarde contemplei o quadro emocionante e extraordinario, comprehendi o genio sombrio e prodigioso de Dante. Porque huma coisa que só elle soube definir e que eu vi naquella sanga estreitíssima abafada e ardente mais lugubre que o mais lugubre valle do Inferno: A blasphemia orvalhada de lagrymas, rugindo nas boccas simultaneamente com os gemidos da dôr e os soluços extremos da morte". Também, o passeio que fez, dentro da cidade de Canudos, em 29 de setembro de 1897, foi um dos pontos determinantes para a mudança de opinião sobre o sertanejo e sua história que se opera em Os sertões. Com uma parte já tomado pelas tropas do Exército, o arraial, seis dias antes de cair inteiramente, emocionou Euclides. Em sua caderneta, anotou: "Não posso definir a comoção ao entrar no arraial". A povoação estranha não ostentava nada que justificasse tamanha resistência e determinação na defesa de seu espaço: "as residências eram furnas escuras e sem ar, tendo como única abertura, às vezes, a porta estreita da entrada e cobertas por um teto maciço e impenetrável de argila sobre folhas de iço"; em seus interiores, somente "um banco grande e grosseiro (uma tábua sobre quatro pés não torneados ),dois ou três banquinhos; redes de cruá; dois ou três baús de cedro de três palmos sobre dois"; Não havia ruas, o que Euclides encontrou foi um "dédalo desesperador de becos estreitíssimos". Além do contato com o "inimigo nacional", muito contribuíram para a mudança do ponto de vista de Euclides a sua convivência com o Exército, instância representativa da nação civilizada contra Canudos, cuja prática permitiu-lhe caracterizar aquele grupo como facínora.
O homem que ele encontrou nem mesmo se dobrava às ciências. E Euclides se sente exigido em seu papel de intelectual brasileiro capaz de rever a imagem em voga do sertanejo. Lança-se, então, ao afã incessante de observar, comparar e registrar aquele universo feito de natureza indômita e homem misterioso, deixando transparecer tudo isso em Os sertões. A complexidade de seus objetos é representada pela complexidade que promove no campo discursivo. Temos, então, momentos definidores construídos pela ação do observador e do narrador que fazem a evolução narrativa.
Em Os sertões, Euclides elabora uma forma narrativa que demonstra sua tendência para as múltiplas perspectivas do tema e dos elementos que o constroem. É o caso, por exemplo, da associação de um narrador e de um observador na definição da estrutura narrativa a formatar o conteúdo da terra, do homem e da luta no sertão brasileiro. Por força disso, desenvolve-se um discurso multiperspectivado, representativo do intercâmbio de vozes narrativas diferentes posicionadas em estratégicos pontos de vista.
Esse discurso se faz notar logo no início na narrativa, onde o planalto central do Brasil é apresentado. Consorciam-se as ações de dois mediadores, que, na socialização das tarefas, asseguram o mapeamento espacial e a formação do pensamento que tece a narrativa. Trata-se de uma interação entre narrador e observador. Aquele mantém a reflexão constante e necessária ao plano estrutural da obra e seu destino; este descreve minuciosamente o contorno geográfico que vai se apresentando aos seus olhos e conduz o leitor na vivência da sensação visual. Dessa forma, os eventos são abordados duplamente e a mediação que a eles se dirige assegura-lhes os efeitos emotivos que a descrição produz.
Com essa visão dialógica, Euclides vivifica a terra, a cúmplice mais ativa do sertanejo na sua constituição como detentor dos elementos formadores da nacionalidade brasileira. Nesse sentido, pelo ato de leitura, acompanhamos a visão do observador ampliando-se à medida que se distancia dos litorais do Sul e se aproxima do sertão nordestino e recebemos o traço do caminho do conhecido rumo ao desconhecido. Na ânsia de dizer, narrador e observador, incansáveis, complementam-se na caracterização do solo, do relevo, do clima e da natureza. Sempre que necessário, o narrador deixa irromper a consciência capaz de permear a fascinação e o assombro do observador diante da natureza. Souza explica que, "mediado pelo intercâmbio dialógico do narrador e do observador itinerante, o prólogo dramático antecipa o tema, o motivo e o tom dominante da narrativa poética de Os Sertões . Ao tema do sertão como Terra ignota, a que se reporta o motivo da viagem exploratória, corresponde o tom dramático do narrador que representa as vicissitudes do observador que se transforma em consonância com a diversidade dos fenômenos observados".
Sob essas óticas, surge o sertão, consolidado como o espaço formador do cerne da nacionalidade brasileira. Euclides recorre a teorias científicas, orientando-se com seus conceitos e tomando-lhes de empréstimo os termos designativos das propriedades daquela terra, promovendo um diálogo entre os saberes. A esse respeito, afirma Souza: "Mais do que intertextual, o seu dialogismo se caracteriza como interdiscursivo. No intercâmbio discursivo de várias vozes provenientes dos diferentes ramos do saber, o seu discurso se nos apresenta multiperspectivado. Ele descarta sempre o monólogo do especialista em favor do diálogo com os diversos protagonistas do drama gnosiológico". Sendo assim, entendemos que essa opção narrativa de Euclides vem a ser uma indicação da necessidade que sentia de expor à nação, cuidadosamente e com fundamentação, as propriedades singulares da terra, até então isolada e selvagem, na qual o sertanejo, estranho ao Brasil civilizado, parece ter se engendrado naturalmente. Entre o exercício da intertextualidade e da interdiscursividade, investiga, exaustivamente, o sertão e o entremeia ao homem que nele habita. Conclui que há muito sobre ambos ainda sem conceito. Interessam-lhe o solo, o clima, a vegetação, enfim, todos os elementos formadores do espaço físico. E observa: "Nenhum pioneiro da ciência suportou ainda as agruras daquele rincão sertanejo, em prazo suficiente para o definir. (...) De sorte que sempre evitado, aquele sertão, até hoje desconhecido, ainda o será por muito tempo." Nesse isolamento, meio físico e seu homem parecem explicar-se, desafiando os conhecimentos à disposição construídos pela ciência em outras terras e com outros seres humanos. Isso é sugerido na descrição dos higrômetros inesperados e bizarros que Euclides encontrou, como este: "O sol poente desatava, longa, a sua sombra pelo chão, e protegido por ela – braços largamente abertos, face volvida para os céus, - um soldado descansava. Descansava... havia três meses. Morrera no assalto de 18 de julho. (...). E estava intacto. Murchara apenas. Mumificara conservando os traços fisionômicos, de modo a incluir a ilusão exata de um lutador cansado, retemperando-se em tranqüilo sono, à sombra daquela árvore benfazeja. Nem um verme – o mais vulgar dos trágicos analistas da matéria – lhe maculara os tecidos. (...). Era um aparelho revelando de modo absoluto, mas sugestivo, a secura extrema dos ares". É essa complementaridade natural que ainda estava preservada na parte esquecida do Brasil que reforça a visão euclidiana sobre o sertanejo como guardador dos elementos básicos formadores do futuro homem brasileiro.
Cabe, por fim, recorrer a uma das mais fortes imagens que se encontram em Os sertões, "rocha viva", para visualizarmos a concepção euclidiana desse homem capaz de dar uma identidade própria à raça brasileira. Tirada da geologia, a imagem "rocha viva da nossa raça" relaciona o sertanejo ao granito, ambos formados por elementos diferentes que se harmonizam na constituição de um todo, fortalecendo-o. Esse sertanejo-rocha teve uma evolução autônoma, uma vez que se formou isolado geograficamente, à força do clima semi-árido e das circunstâncias de sobrevivência elaboradas no isolamento. Para Euclides, ele deveria ser preservado, pois sua estabilidade física e social constituiria a base sobre a qual se formaria a raça futura do Brasil
REFERÊNCIAS BIBLLIOGRÁFICAS
AQUINO, Ivânia Campigotto. Literatura e história em diálogo: um olhar sobre Canudos. Passo Fundo: Edupf, 2000.
CUNHA, Euclides. Diário de uma expedição. São Paulo: Cia das Letras, 2000.
_______________. Os sertões: Campanha de Canudos. Belo Horizonte - Rio de Janeiro: 1998.
PAREDES, Marçal de Menezes. Memórias de um ser-tão brasileiro: tempo, história e memória em Os sertões de Euclides da Cunha. Curitiba: Juruá, 2003.
SANTANA, José Carlos Barreto de. Euclides da Cunha e as Ciências Naturais. São Paulo: Hucitec – Feira de Santana: Uefs, 2001.
SOUZA, Ronaldes de Melo e. A Geopoética de Euclides da Cunha. Conferência de Abertura da 91ª Semana Euclidiana. São Paulo, 2003.
VENTURA, Roberto. Retrato interrompido da vida de Euclides da Cunha. Organização de Mario César Carvalho e José Carlos Barreto de Santana. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
A insistência dos críticos em ler na obra Os sertões a aplicação unilateral do Positivismo e do Evolucionismo fez com que inúmeros aspectos que não se enquadram nos preceitos cientificistas de tais teorias fossem relegados ao esquecimento. Ora, a pureza teórica deixou de orientar Euclides em criações essenciais de sua narrativa, como a imagem que fez brotar do sertanejo, o qual, não descendendo de raças puras, não podia ser enquadrado nas teorias vigentes, a não ser para destacar a inferioridade que os preconceitos raciais instalados pelos campos teóricos de sua época encontravam nos grupos não-brancos. Ele enfrenta um problema teórico que estava, na época, apenas delineado, o da miscigenação racial, e constrói argumentos para apresentar o mestiço que se fez no sertão como o ser identitário da nação. Da mesma forma, ao se referir à terra, aponta-a como desconhecida, tanto dos homens do Sul quanto da ciência. Seu caminho, então se volta para os séculos de formação do espaço semi-árido e, nesse rumo, conforme nos diz Souza (A geopoética de Euclides da Cunha. p. 11), que descobre nessas passagens a visão mitopoética do observador itinerante, não é o "sistema geral da geologia que o guia". Euclides se dá conta de que aquela terra está em gestação e, portanto, reclama explicações próprias. Nesse sentido, a sua contribuição vem de seu plano artístico, que revela a terra como "sujeito dotado de força vital, como personagem em ação."
Conforme Ronaldes de Melo e Souza em A Geopoética de Euclides da Cunha, Conferência de Abertura da 91ª Semana Euclidiana realizada de 9 a 15 de agosto de 2003, em São José do Rio Pardo, São Paulo.
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