Refletir acerca de um livro sob o ponto de vista da memória
social remete à dinâmica entre duas forças antagônicas:
a lembrança e o esquecimento. Por que alguns livros resistem ao tempo
permanecendo vivos na memória dos homens, sendo continuamente revisitados
por eles, enquanto outros são facilmente esquecidos, tornando-se descartáveis
e ultrapassados? O que mantém um livro vivo? Por intermédio de
quais forças, pela ação de quais agentes um livro sobrevive,
mantendo-se atual, conectado com um presente cada vez mais acelerado e mutável?
Por que e para que ler um livro escrito há cem anos e no mesmo movimento
esquecer outros produzidos há menos de uma década ou mesmo meses
e semanas? Como assinalou Walter Benjamin, a sociedade moderna ancora-se em
dois pilares que remetem a uma certa noção de temporalidade: o
conceito de novidade e o de objetividade. Numa sociedade sedenta pela novidade
absoluta, o jornal da véspera é útil apenas para embrulhar
o peixe na manhã seguinte. Sob o signo da notícia - a informação
que se presume objetiva e nova - o tempo da modernidade se caracteriza pela
aceleração constante de um eterno presente em direção
a um vago e incerto futuro, onde o passado convém ser esquecido. Quando
os liames entre passado, presente e futuro se rompem e o passado não
serve mais para iluminar o futuro, a humanidade caminha às cegas, argumentou
Hanna Arendt.
O que de essencial, de crucial, de atávico existiria
em obras que batizamos de clássicos e que merecem contínuas comemorações,
atualizações, reedições e mesmo cultos e adorações?
A que função social estas obras estariam servindo, uma vez que
em tudo e por tudo elas parecem justamente caminhar no sentido inverso em que
se projetam as forças dominantes de um mundo que se movimenta incessantemente
através do ato de construir para destruir? Para que guardar, conservar,
preservar se tudo pode ser reinventado, refabricado, reatualizado? Qual a lógica
que preside a perenização num contexto em que nada é feito
para durar?
Estudando sociedades tradicionais, a Antropologia Social
sistematizou um conhecimento sobre o valor do sagrado em uma cultura. Este sagrado
pode estar metaforizado em objetos de cultura material ou em pessoas representativas
para uma aldeia ou comunidade. É o caso de um certo machado semi-lunar
de pedra arqueológica (Kyire) produzido pelos índios Krahó,
do norte de Goiás. Para eles, o machado é uma metáfora,
sintetizando sua história que começa numa era mítica e
é contínua sem periodizações. Em 1947, o antropólogo
Harald Schultz coletou o machado para sua pesquisa e o doou ao Museu Paulista.
No início de 1986, um grupo de índios Krahó passou tres
meses em São Paulo até obter de volta o machado que fora indevidamente
retirado da tribo. Como assinalou Berta Ribeiro, objetos como este tornam-se
símbolos de heranças e tradições em uma cultura,
representando o esforço de um grupo humano em construir uma identidade
social que ancora-se nos elos de ligação entre o passado, o presente
e o futuro. "Essa busca de legitimação, através de
símbolos, é comum ao índio e ao branco. Quando ela se sedimenta,
o artefato-símbolo se torna o espelho da identidade. Por sua durabilidade,
a cultura material tem uma existência que se prolonga no tempo. Compõe
imagens familiares do mesmo modo como o ambiente físico com o qual o
indivíduo se habitua a conviver."
Nas sociedades ocidentais essencialmente letradas, os
livros sagrados podem ser vistos em dupla significação. Por um
lado, compõem o universo da cultura material uma vez que são objetos
tridimensionais com uma existência própria, específica.
Por outro lado, contêm ensinamentos que só podem ser apreendidos
por meio de uma repetição constante que não se esgota jamais.
Assim, como os mitos em sociedades tradicionais devem ser contados de forma
ritualizada num ambiente propício onde toda a assembléia se reúne
para tal fim, nas sociedades modernas persistem alguns espaços onde livros
sagrados como a Bíblia são lidos em voz alta para uma assembléia
atenta no contexto de rituais específicos. Estes livros sagrados, dos
quais os clássicos constituem uma modalidade, funcionam com duplo potencial
simbólico. De um lado, enquanto objetos reverenciados sintetizam de forma
metafórica o conjunto de uma doutrina. De outro lado, enquanto relatos
compilados de narrativas orais, sustentam tradições de longa duração
numa cultura. Embora seja possível proceder a um estudo científico
da Bíblia, em termos sociológicos sua principal função
consiste em permitir com que indivíduos isolados se considerem fazendo
parte de um mesmo conjunto, partilhando os mesmos ideais e os mesmos valores.
A Bíblia funda e atualiza uma tradição católica,
assim como o Alcorão funda e atualiza uma tradição muçulmana.
Enquanto objetos, estes livros merecem reverência e respeito dos povos,
pois qualquer atitude em contrário é capaz de gerar conflitos
e guerras indesejadas. O livro sagrado é seminal em uma cultura mantendo
íntima relação com diversos tipos de produção.
George Steiner dedicou-se, por exemplo, a mapear as relações da
Bíblia com a literatura. Segundo ele, muito do que se produziu e do que
se produz relaciona-se de algum modo com a Sagrada Escritura. "As histórias
de Moisés e de Sansão ressurgem grandiosas no romantismo francês
(Victor Hugo, Vigny). O Proust que conhecemos não existiria sem Sodoma
e Gomorra. Tampouco Kafka, sem as Tábuas da lei, ou Racine sem Esther
e Athalie. Ecos da Bíblia, o jogo de citações escondidas
ou de paródias são tão indispensáveis ao Fausto
de Goethe quanto às fantásticas reflexões de Henry James
sobre o Éden e sobre o pecado capital em A taça de ouro".
Pierre Nora, o criador da expressão "lugares
de memória" chamou a atenção para o fato de que nas
sociedades modernas, o domínio da História enquanto disciplina,
com um corpo sistematizado de teorias e métodos e uma perspectiva de
busca objetiva de uma verdade sobre o passado, estaria ofuscando o trabalho
da memória. Estaríamos fadados a aprender com a História
(com H maiúsculo) as verdades sobre o passado. E no mesmo movimento,
seríamos obrigados a relegar ao esquecimento toda uma tradição
de memória desenvolvida ao longo de séculos e que nada tem a ver
com o conhecimento racional e científico sobre fatos produzidos por historiadores
sobre o passado. Sendo Nora um historiador, desperta nossa curiosidade o interesse
dos próprios historiadores em fazer uma espécie de meta-história,
relativizando seus próprios instrumentos de trabalho e uma disciplina
que levou tempo para se firmar como ciência. Entretanto, o caminho trilhado
por Nora, entre outros, é útil para retirarmos o véu que
durante anos encobriu as ditas verdades históricas. Se não pensamos
sempre com categorias históricas, ao menos desta historicidade produzida
a partir do século XIX, com que categorias foi possível pensar
o tempo e nossa relação com ele? Ainda segundo Nora, categorias
de pensamento produzidas em outros contextos históricos, dos quais a
Antiguidade emerge como destacado exemplo, não contemplavam uma relação
racional e científica, mas pelo contrário, estimulavam a relação
afetiva com o tempo e com os homens através dos tempos. Lembrar é
uma função vital para sociedades tradicionais assim como o era
para nossos ancestrais durante a Antiguidade. Numa sociedade onde não
se privilegiavam arquivos, museus e bibliotecas como guardiãos de memória,
todos deviam lembrar. Ao menos das regras e condutas básicas que tornavam
possível o viver em sociedade. Deste modo, certos rituais podiam por
exemplo marcar um tempo pensado e vivido como cíclico, de eterno retorno.
Nora entende que o século XX no Ocidente tornou
cada vez mais agudo um paradoxo: jamais se falou tanto em memória em
nossas sociedades, justamente porque nelas a memória se perdeu. É
o fato de não sermos mais capazes de lembrar que alimenta a multiplicação
de arquivos, museus, bibliotecas e outros lugares capazes de armazenar a memória
expulsa do tecido social. Assim, os "lugares de memória" incluiriam
lugares físicos para guarda, classificação e disponibilização
da memória social, bem como lugares pouco palpáveis como datas
de aniversário e celebrações ou até mesmo pequenos
eventos como os "minutos de silêncio" que se convencionou fazer
em homenagem aos mortos.
Na disputa entre a História e a Memória,
nem mesmo a chamada "Memória Nacional" teria sido poupada.
Nora a considera nosso último reduto de memória coletiva. A crítica
dos historiadores a toda a forma de memória terminou por lançar
no limbo da ideologia ou "má ciência" toda uma tradição
construída como arcabouço das nações modernas. No
alvorecer do século XXI encontramo-nos frente a um paradoxo. Se, por
um lado, os Estados-nações mantêm-se ainda enquanto uma
das principais formas de pertencimento e de construção de identidade
social, por outro lado, houve uma crescente dessacralização de
ícones e símbolos referentes à "memória nacional".
Se, no processo de construção dos Estados-nações
no Ocidente, um grande esforço foi feito no sentido de constituir um
aparato de símbolos e monumentos que identificassem as singularidades
nacionais e tornassem possível o estabelecimento de vínculos entre
os cidadãos e a idéia abstrata de nação, no final
do século XX toda uma vertente da História caminhou no sentido
de demolir todo este aparato, denunciando suas "inverdades", o fundo
"falso" e sobretudo "ideológico" sobre o qual fora
erigido. Veja-se por exemplo o caso dos heróis e dos chamados grandes
personagens antes cultuados pela Memória Nacional. Pesquisas minuciosas
foram conduzidas em nome da ciência histórica para destituí-los
do caráter sagrado a que haviam sido revestidos. A busca da verdade histórica
contaminou a tal ponto as tentativas de perpetuação da Memória
Nacional que colocou seus defensores numa posição de anacronismo.
Poucos sobreviveriam. Entretanto, era preciso que estes, ainda que poucos, sobrevivessem.
Como falar de uma tradição inventada, datada, recente como a tradição
nacional sem que se invocassem seus fundadores e, principalmente, seus idealizadores?
Como ensinar para as novas gerações a história de um país
sem que se mencionassem aqueles que lutaram pela sua implantação,
sem que se descrevessem suas propostas, suas posições, seus ideais.
Como ensinar e ao mesmo tempo criar um sentimento de pertencimento, uma consciência
cívica predominantemente emocional e afetiva, sem a qual nenhum projeto
nacional pode frutificar? É neste sentido que pretendo argumentar sobre
a importância de Os Sertões no contexto brasileiro. Ao traçar
a arqueologia de um livro-monumento, gostaria de chamar a atenção
para um fato que extrapola qualquer avaliação crítica e
científica de suas contribuições: Os Sertões é
um livro-memória, um livro sagrado da Memória Nacional. Talvez
um dos poucos que tenham sobrevivido ao expurgo empreendido pela ciência
histórica. Mas, fundamentalmente, um livro carregado de significações
e cuja importância reside em metaforizar alguns dos dilemas nacionais.
Desse modo, ele é para o Brasil o que o machado de pedra arqueológica
é para os índios Krahó do norte de Goiás. Enquanto
artefato-símbolo ele nos conecta com um tempo de fundação
da nação republicana, sendo o próprio Euclides da Cunha
personagem-símbolo da história desta fundação. Ao
estar associado a este caráter fundante do nacional, o livro se articula
diretamente ao processo de construção da identidade nacional.
Mas por que este livro, exatamente este, e não
outro? Uma das razões estaria no fato de Os Sertões se apresentar
como um livro de ciência. Paradoxalmente, apenas um clássico da
ciência poderia se tornar um livro de fé para estimular a crença
na nação brasileira. Então, neste sentido Os Sertões
é também um livro-monumento, capaz de estreitar os liames entre
o presente e o passado na busca de iluminação do futuro.
O tema do monumento associa-se à diferença
entre a memória e a história. Como assinalou Françoise
Choay, "é necessário precisar o conteúdo e a diferença
dos dois termos subentendidos no conjunto das práticas patrimoniais:
monumento e monumento histórico." O sentido original do termo monumento
está compreendido na problemática da memória social. "Vindo
do latim monumentum, que por sua vez deriva de monere ("advertir",
"lembrar"), aquilo que traz à lembrança alguma coisa.
A natureza afetiva do seu propósito é essencial: não se
trata de apresentar, de dar uma informação neutra, mas de tocar,
pela emoção, uma memória viva." O monumento está
associado à função de rememoração: "fazer
que outras gerações de indivíduos rememorem acontecimentos,
sacrifícios, ritos ou crenças." Choay considera ainda que
"a especificidade do monumento deve-se precisamente ao seu modo de atuação
sobre a memória. Não apenas ele a trabalha e a mobiliza pela mediação
da afetividade, de forma que lembre o passado fazendo-o vibrar como se fosse
presente. Mas esse passado invocado, convocado, de certa forma encantado, não
é um passado qualquer: ele é localizado e selecionado para fins
vitais, na medida em que pode, de forma direta, contribuir para manter e preservar
a identidade de uma comunidade étnica ou religiosa, nacional, tribal
ou familiar. (...) o monumento é uma defesa contra o traumatismo da existência,
um dispositivo de segurança. O monumento assegura, acalma, tranqüiliza,
conjurando o ser do tempo. Ele constitui uma garantia das origens e dissipa
a inquietação gerada pela incerteza dos começos. Desafio
à entropia, à ação dissolvente que o tempo exerce
sobre todas as coisas naturais e artificiais, ele tenta combater a angústia
da morte e do aniquilamento. Sua relação com o tempo vivido e
com a memória, ou, dito de outra forma, sua função antropológica,
constitui a essência do monumento."
Se o monumento está associado a uma função
de rememoração e este passado invocado não é um
passado qualquer, mas um passado reconstruído e selecionado para fins
vitais, na medida em que contribui para a construção de uma identidade
social, caberia a nós explicitar este passado construído e atualizado
nas páginas de Os Sertões e que lhe possibilitou atravessar o
século sendo continuamente invocado.
Analisar Os Sertões enquanto um livro-monumento
significa entender de que forma, por meio de quais procedimentos e de quais
agentes este produto sui-generis veio a se tornar um monumento. Traçar
este processo ou esta genealogia significa focalizar dois movimentos que se
sucederam no tempo: o movimento da consagração do livro que se
deu logo após o seu lançamento em 1902 e o movimento da difusão
da obra nacional e internacionalmente. Enquanto livro consagrado, Os Sertões
passou para a história como documento sui generis, fonte de uma narrativa
considerada autêntica sobre uma passagem sangrenta da história
do país. Sua monumentalização conferiu um aspecto sagrado
a esta narrativa. Intitulado "Bíblia da Nacionalidade", Os
Sertões passou a vigorar enquanto um livro de verdades sobre o país,
expondo suas contradições, seus dilemas, suas questões
mais candentes. Se, num primeiro momento, pretendeu apenas discorrer sobre um
acontecimento trágico que envolveu diferentes forças sociais no
início do período republicano, o livro terminou se tornando um
libelo sobre alguns dos pressupostos que deveriam nortear a implantação
da nação republicana. Citado por escritores, cientistas e também
por políticos, juristas e todo um conjunto de técnicos e profissionais
empenhados na missão de fundar uma civilização nacional
no Brasil, Os Sertões rapidamente se transformou num ícone sagrado
e autêntico, uma voz autorizada sobre o Brasil. Num país com poucas
tradições de longa duração, o significado de Os
Sertões ultrapassa o próprio conteúdo do livro. Um forte
conteúdo simbólico vem impregnando esta obra e seu autor já
há muito santificado no panteão dos grandes da nação.
Por que esta obra e seu autor foram sendo monumentalizados, preenchendo lugar
de destaque no imaginário da memória nacional, configurando um
dos poucos símbolos de uma frágil construção de
memória coletiva? Quais os agentes dedicados a este processo? Como ele
foi sendo tecido? É preciso focalizar a trajetória de Os Sertões
enquanto uma trajetória própria com contornos singulares e alguns
momentos privilegiados. O primeiro diz respeito ao lançamento do livro
em 1902 e à crítica de primeira hora, responsável por sua
consagração. O segundo diz respeito à formação
de um grupo de admiradores que se sucedeu no tempo e que ganhou especial destaque
após a trágica morte do escritor em 1909. Este movimento orquestrado
por algumas lideranças foi responsável pela difusão da
obra nacional e internacionalmente, criando condições para que
ela viesse a ser traduzida em diversas línguas, entre elas o francês,
o inglês, o japonês, o alemão, o chinês, o italiano,
o espanhol, o holandês.
O ponto que quero destacar é que a monumentalização
de um objeto, seja ele de "pedra e cal", seja ele uma narrativa oral,
ou um livro, ou um objeto intangível, ou até mesmo uma pessoa
como os chamados "tesouros humanos vivos" - pessoas tombadas em países
como o Japão por serem vistas como detentoras de um conhecimento importante
para a identidade nacional -, enfim, todas as formas de monumentalização
são discursivamente constituídas. Como assinalou José Reginaldo
Gonçalves, "os objetos que identificamos e preservamos enquanto
"patrimônio cultural" de uma nação ou de um grupo
social qualquer, não existem enquanto tal senão a partir do momento
em que assim os classificamos em nossos discursos". Assim como Gonçalves
estou usando a noção de "gênero de discurso" não
em seu sentido formalista, mas, na acepção formulada por Mikhail
Bakhtin, como um "campo de percepção valorizada, um modo
de representar o mundo". Ao identificar o livro Os Sertões enquanto
um livro-monumento, estamos entendendo que diferentes agentes sociais se destacaram
no processo de construção discursiva desta monumentalização
e de que a sua afirmação faz parte de um processo onde uma determinada
correlação de forças foi favorável nesta direção.
O aspecto central para a constituição
de um monumento é a sua relação com um passado considerado
autêntico de um grupo social. A noção de autenticidade desempenha
pois um papel determinante. O monumento enquanto expressão e símbolo
de uma narrativa sagrada deve necessariamente estar conectado à construção
de uma verdade autêntica sobre o passado. Neste sentido, procuraremos
no curto espaço deste ensaio focalizar alguns dos elementos que historicamente
contribuíram para certificar a autenticidade da narrativa épica
contida em Os Sertões. De que autenticidade está se falando? Quais
"verdades" sobre o país estão sendo afirmadas? A crítica
consagradora de primeira hora estabeleceu algumas referências importantes
nesta direção. A leitura que fizeram estes críticos, particularmente
José Veríssimo, Araripe Júnior e Sílvio Romero,
fornece algumas chaves para o entendimento de seu processo de monumentalização.
Analisaremos algumas destas referências, chamando a atenção
para a categoria "Brasil social" explicitada por Sílvio Romero,
uma das chaves para a autentificação da obra de Euclides da Cunha
como uma das principais narrativas épicas do país. De acordo com
Romero, Euclides da Cunha teria atingido o cerne da nacionalidade construindo
um novo olhar para as populações sertanejas que sempre fizeram
a riqueza do país. Antes, porém, tracemos uma breve síntese
do contexto social e editorial em que o livro foi lançado.
2. Lançamento e primeiras edições
de Os Sertões
Sílvio Romero, um dos mais importantes críticos
literários do período, destacou a repercussão que teve
o surgimento de Os Sertões em 1902: "de Euclides da Cunha se pode
dizer que se deitou obscuro e acordou célebre com a publicação
de Os Sertões. Merecia-o." Romero referia-se ao fato de Euclides
da Cunha ser na ocasião um escritor estreante repentinamente alçado
à glória de um dos escritores mais consagrados da capital federal.
É preciso ter em mente que, em 1902, quando o livro foi lançado,
o mercado editorial no Brasil apenas começava a se esboçar. Forte
característica centralizadora marcava o campo literário, cujas
principais agências se concentravam na rua do Ouvidor no Rio de Janeiro.
Esta situação vigoraria até o incremento do surto editorial
nos anos 20, em São Paulo, tendo à frente o escritor Monteiro
Lobato.
O mercado editorial era dominado por editores franceses
ou portugueses. Francisco de Paula Brito foi o único editor brasileiro,
de finais do século XIX até 1919. Criou a revista de maior duração
no período, a Marmota Fluminense. Publicou autores do Romantismo, como
Gonçalves Dias e Gonçalves de Magalhães, além das
comédias de Martins Pena, e teve Machado de Assis como seu revisor de
provas. No coração do centro comercial destacavam-se duas livrarias,
uma em frente à outra, a Garnier e a Laemmert. Eram, na verdade, duas
casas editoras que, tendo iniciado suas atividades em meados do século
anterior, representaram um marco no setor editorial. Foi com elas que a publicação
de livros se separou da edição de jornais. Porém, sobretudo
no caso da Garnier, os livros eram impressos no exterior, principalmente na
França ou em Portugal, uma vez que a indústria de papel era incipiente,
os equipamentos gráficos praticamente inexistiam, e toda a indústria
nacional engatinhava.
A Laemmert iniciou suas atividades como livraria, a Livraria
Universal, em 1883. Dirigida por dois irmãos, Heinrich e Eduard Laemmert,
começou a funcionar também como editora a partir de 1837, inaugurando
a Typographia Universal. Entre suas publicações, a mais famosa
era o Almanack Laemmert que surgiu ainda no Império como o almanaque
administrativo, mercantil e industrial da Corte e província do Rio de
Janeiro. Os Laemmert publicavam obras gerais, como dicionários, uma coleção
de máximas, obras de medicina, seleção de poesias brasileiras,
estudos de literatura contemporânea. Publicavam ainda livros traduzidos
do francês, mas seu forte eram os originais alemães. Chegaram a
editar Goethe e foram pioneiros na literatura infantil, editando, entre outros,
As Aventuras do Barão de Münchausen. A editora aventurou-se, também,
embora em pequena escala, na edição de livros didáticos.
A Livraria Garnier dividia com a Laemmert (Universal)
o mercado de livros, concentrando-se na publicação de literatura.
Dirigida pelo francês Baptiste Louis Garnier, seus livros eram impressos
em Paris e Londres. Criada em 1844 e considerada a principal responsável
pelo início do desenvolvimento editorial brasileiro, a Garnier teve a
seu favor pontos importantes como pagamento regular de direitos autorais, boa
remuneração aos tradutores, formação de um corpo
fixo qualificado de redatores-revisores e maciço investimento em literatura,
tanto européia quanto nacional. Baptiste Louis publicou, entre outros,
Honoré de Balzac, Walter Scott, Charles Dickens, Alexandre Dumas e Oscar
Wilde. Com forte tino comercial, conservador e nada afeito a riscos, ele priorizava
a edição de autores consagrados. Editou a maioria das obras dos
romancistas brasileiros importantes de seu tempo. A numerosa equipe de autores
da Garnier incluía José de Alencar, Joaquim Manuel de Macedo,
Graça Aranha, Gonçalves Dias, Álvares de Azevedo, Joaquim
Nabuco, Sílvio Romero, Olavo Bilac, José Veríssimo, Artur
Azevedo, Bernardo Guimarães, Paulo Barreto (o João do Rio). Baptiste
Louis Garnier foi também o pioneiro e principal editor de Machado de
Assis.
No interior da Editora Garnier, no andar térreo,
um em frente ao outro, dois extensos balcões de madeira de lei polida
separavam as estantes das 12 cadeiras que serviam de palco aos informais debates
literários que se realizavam todas as tardes sob a liderança de
Machado de Assis. Eram as "cadeiras dos doze apóstolos". O
mestre era Machado de Assis, o único a ter lugar cativo. Os demais se
revezavam entre os escritores que alcançavam consagração
em diferentes períodos. Machado de Assis manteve longa liderança
nessa que foi praticamente a única grande editora a publicar autores
brasileiros. Por esse motivo, escritores que almejavam editar seus livros na
Garnier disputavam a possibilidade de desfrutar das conversas de fim de tarde
na editora e, na melhor das hipóteses, a condição de serem
incluídos entre os "apóstolos". José Veríssimo,
Mário de Alencar, Joaquim Nabuco, Clóvis Beviláqua, Coelho
Neto, Olavo Bilac foram assíduos nesse ritual e desfrutaram da benevolência
do mestre.
Numa sociedade restrita, em que uma editora reinava soberana
na publicação de autores brasileiros, os escritores novatos não
tinham muitas opções para editar seus livros: deviam "cair
nas boas graças" de Machado de Assis ou dos poucos editores da capital.
Outra forma era publicar em fascículos nos jornais da capital federal
ou mesmo nas capitais mais importantes, como São Paulo. Fora dessas opções
ou até mesmo para atingi-las deveriam freqüentar livrarias, cafés,
salões e confeitarias, anunciando seus produtos, ou seja, recitando seus
poemas, declamando suas crônicas ou lendo os capítulos dos livros
que escreviam. Esse ritual mundano era tão intenso, que Brito Broca menciona
autores, como Paula Nei, que permaneceram toda a vida alimentando o circuito
da "literatura oral" dos cafés e confeitarias, sem ter conseguido
editar um livro sequer.
Euclides da Cunha havia participado do final da guerra
de Canudos como correspondente do jornal O Estado de São Paulo. Militar
e engenheiro, nunca havia escrito um livro, apenas artigos, poemas e ensaios
publicados em jornais. Ao retornar da Bahia, em 1898, foi designado pela Superintendência
de Obras de São Paulo para reconstruir uma ponte de ferro, erguida em
1896, que havia ruído após enchente numa pequena cidade do interior
de São Paulo, São José do Rio Pardo. Percebendo que se
tratava de trabalho demorado, Euclides mudou-se para seu novo posto com a família,
nesse tempo composta por Ana, sua esposa, e dois filhos, Solon e Euclides.
Como o trabalho de reconstrução da ponte
exigia presença permanente no local, Euclides mandou erguer uma pequena
barraca com telhado de zinco à sombra de uma paineira, que passou a servir
de escritório tanto para os assuntos de engenharia como para os intelectuais.
Durante três anos, na cabana de São José do Rio Pardo, ele
refletiu sobre os acontecimentos que presenciou como repórter em Canudos.
A partir das anotações de seu diário de campo, procurou
pesquisar outras fontes para enriquecer as informações recolhidas
nos sertões baianos e as pesquisas realizadas em Salvador. Relatam os
biógrafos que Euclides muito se valeu nesse sentido do apoio e da solidariedade
de amigos que fez em São José do Rio Pardo, como Francisco Escobar,
intelectual local que lhe abriu sua biblioteca particular e que se encarregava
de buscar livros de acordo com as necessidades do engenheiro. Nessa época,
um engenheiro de obras públicas era figura de prestígio, comprometida
com os ideais de fazer progredirem pequenas localidades, como a cidade em questão.
Além disso, Euclides da Cunha era, muito provavelmente, conhecido por
uma parcela das elites locais por conta de sus artigos sobre a Guerra de Canudos
publicados em O Estado de São Paulo. Por intermédio de Escobar
e de outros amigos, como Lafaiete de Toledo, Adalgizo Pereira, José Honório
de Silos, Valdomiro Silveira, Euclides teve acesso a livros e revistas que chegavam
a São Paulo.
As cartas de Euclides a seus amigos revelam que muitos
deles prestaram efetiva colaboração ao então engenheiro,
não medindo esforços para encontrar em São Paulo ou até
no Rio de Janeiro os livros de que o escritor necessitava. Veja-se, por exemplo,
esta carta de de Euclides a Escobar: "Escobar. Insisto num pedido: encontra-me
em São Paulo, por qualquer preço, o Ferro e Fogode Sienkiewicz,
mas em inglês. Talvez já exista um no Garraux e com certeza no
Rio. Euclides, 1901"
Além dos pedidos de livros, outro tema recorrente
na correspondência é a dificuldade em conjugar a atividade de engenheiro
com a de intelectual. Nessas cartas, ora atribuía a atividade de engenheiro
um valor positivo, associando-a a "questões sérias",
"importantes para impulsionar o país na direção do
progresso, ora atribuía-lhe valor negativo, associando-a à falta
de tempo que constantemente o dilacerava, não lhe permitindo dedicar-se
à atividade intelectual. A angústia de Euclides, dividido entre
essas duas atividades, é exemplar para pensar o lugar em que viviam os
intelectuais brasileiros, pioneiros que se dedicavam a fazer ciência no
Brasil. Ainda não havia instituições adequadas para abrigar
cientistas. As poucas que começavam a ser fundadas tinham, em muitos
casos, suas vagas preenchidas por pesquisadores estrangeiros, como os museus
nacionais. Euclides exasperava-se, com freqüência, ante a divisão
entre a engenharia fatigante e o trabalho intelectual: "agito às
vezes este ponto de interrogação sinistro como o Hamlet nas malhas
do ser ou não ser e como herói shakespeareano deixo-me dominar
pelas mais dolorosas dúvidas". E, mais adiante: "A vida ativa
de engenheiro, mas de engenheiro a braços dados com questões sérias
e não cuidando de emboços e rebocos em velhos pardieiros - veio
convencer-me que tinha ainda muito a aprender e que não estava sequer
no primeiro degrau de minha profissão."
Em seu barracão de zinco, às margens do
Rio Pardo, Euclides realizou de fato duas reconstruções: a da
ponte metálica e a de sua viagem a Canudos como testemunha ocular de
uma guerra que ao final lhe pareceu plena de equívocos. Isolado e interagindo
com a literatura científica da época, o engenheiro seguia intuitivamente
o caminho do cientista que revê os dados à luz de novas teorias
para avançar e produzir novo conhecimento. A ponte era a metáfora
de Canudos, pois, tanto numa situação como na outra, havia algo
a reconstruir. A atividade de engenheiro nesse caso não era incompatível
com a do escritor. Nas duas, imperava a ciência.
Durante três anos, Euclides trabalhou obstinadamente
nas duas atividades, permanecendo mais tempo no pequeno barracão de zinco
do que em casa com a família. Ao final de 1901, dava por terminado o
trabalho de reconstrução da ponte e do livro. Para um engenheiro
que nunca havia escrito um livro, entretanto, não era fácil debutar
na literatura, campo muito disputado e ainda dominado por pequeno grupo de livreiros,
editores e escritores. Euclides não era um freqüentador das rodas
literárias da Rua do Ouvidor, não tinha proximidade com nenhum
escritor consagrado. Sua única opção era editar seu livro
em fascículos por algum jornal conhecido. Deixou os manuscritos em poder
de Júlio de Mesquita, de O Estado de São Paulo, enquanto se ocupava
com a mudança de São José do Rio Pardo para São
Carlos, para onde a Superintendência de Obras Públicas do Estado
de São Paulo o designara. Em seguida foi para Lorena. Longos seis meses
se passaram desde o encontro de Euclides com Júlio de Mesquita. Retornando
à redação do jornal, encontrou seu pacote de originais
no mesmo lugar em que o deixara. Decepcionado, resolveu procurar algum conhecido
entre os escritores da capital federal. Foi desse modo que conseguiu do amigo
Garcia Redondo uma carta apresentando-o à Lúcio de Mendonça,
no Rio de Janeiro, por intermédio de quem conseguiu que a Editora Laemmert
publicasse o livro com a condição de que ele contribuísse
com os custos da edição. A editora não queria correr o
risco editando o livro de estréia de um engenheiro e jornalista que se
aventurava na literatura.
Segundo Anibal Bragança, em estudo sobre as primeiras
edições de Os Sertões, através de um contrato com
o editor, Euclides obrigou-se a contribuir com a quantia de um conto e quinhentos
mil réis para as despesas de impressão, sendo que a metade no
ato da assinatura do contrato e o resto até o prazo em que deveria ficar
pronta a obra, previsto inicialmente para 30 de abril de 1902. A quantia de
um conto e quinhentos réis correspondia a aproximadamente metade do seu
salário de engenheiro da Secretaria de Obras do Estado de São
Paulo.
Ainda segundo Bragança, o contrato firmado entre
Euclides da Cunha e a Laemmert era um contrato editorial típico estabelecido
entre autor e editor para cessão de direitos autorais de uma obra a ser
editada e comercializada pelo editor. A exigência de participação
do autor no investimento financeiro valia apenas para a primeira edição.
O contrato estabelecia que do produto líquido da venda se pagaria em
primeiro lugar as despesas da impressão e brochura, e o lucro líquido
que resultasse seria dividido em partes iguais entre o autor e os editores.
De regresso a São Paulo, Euclides passou todo
o ano de 1902 fiscalizando obras do estado. No final desse ano, o engenheiro
recebeu do editor, pelo correio, o aviso de que poderia vir ao Rio de Janeiro
assistir ao lançamento do livro. Euclides chegou à Rua dos Inválidos,
onde ficava a editora, e encontrou alguns exemplares da primeira edição
de Os Sertões sobre o balcão. Bastante inseguro, ainda procurou,
em vão impedir à última hora o lançamento do livro.
Ao folheá-lo percebia incorreções e temia o fracasso. Voltou
para Lorena, seu posto na ocasião, temeroso, mas pouco tempo depois,
recebeu carta do editor anunciando que o livro era um grande sucesso de vendas.
Há divergências quanto ao dia exato do lançamento
da obra. Uns afirmam que teria sido no dia 2 de dezembro de 1902, outros que
teria sido entre os meses de agosto e outubro deste ano. É preciso lembrar
que naquela época não havia, como hoje, um ritual de lançamento
com dia e hora precisos. Pelo contrário, dadas as dificuldades de acabamento
dos livros, o lançamento de uma edição muitas vezes ocorria
aos poucos, pois a encadernação dos exemplares nem sempre era
confeccionada de uma só vez. De qualquer modo, nas correspondências
de Euclides fica claro que em 3 de dezembro de 1902, o livro já estava
circulando, pois é desta data a carta que Euclides escreve a José
Veríssimo afirmando: "Ao ler no ´Correio´ de hontem a notícia
do seu juízo crítico sobre Os Sertões..."
De qualquer forma, há que se registrar o empenho
do próprio autor para a publicação de seu livro. Na época,
as edições eram decididas no estreito círculo de livreiros
da rua do Ouvidor, ou em Paris onde ficava a sede da Garnier. No mesmo ano da
edição de Os Sertões, Graça Aranha publicou pela
Garnier o livro Canaã. Esta edição foi decidida em Paris
por Hyppolite Garnier, após ter sido submetida à sua apreciação
por Joaquim Nabuco. Para a decisão foi fundamental a insistência
de Joaquim Nabuco, diplomata com muitas relações. Graça
Aranha era seu assistente. A Garnier procurava publicar escritores da velha
geração e com venda garantida. Para editar um autor estreante
eram necessárias recomendações de peso. Diferentemente
de Graça Aranha, Euclides da Cunha não tinha padrinhos que o pudessem
recomendar. Por outro lado, ele se colocava como um crítico desses métodos
de influência política e apadrinhamento. "Neste país
para tudo se fazer são necessários mil pedidos e mil empenhos,
duas coisas que me repugnam - disse ele certa ocasião em carta a seu
pai". Assim como o livro de estréia de Euclides da Cunha, Canaã
foi também um sucesso de vendas, alcançando cinco edições
entre 1902, ano do lançamento, e 1913, além de mais duas até
1922. O enredo tematizava a fuga de um alemão, desencantado com a civilização
européia, para o interior do Brasil.
A cidade do Rio de Janeiro desfrutava de posição
privilegiada por concentrar as casas editoras e as agências consagradoras
do campo literário. Este era constituído por escritores nativos
ou consagrados na capital federal, alguns poucos, mas influentes, livreiros
e editores brasileiros, como Paula Brito, e estrangeiros, como os irmãos
Laemmert e o Garnier, alguns poucos críticos literários, em geral
escritores consagrados conjugando o trabalho de literatura com o de crítica.
Variável importante, que tornava mais complexa a caracterização
do campo literário brasileiro na virada do século XIX, era a íntima
relação de vários escritores com Paris. Viagens para a
capital francesa e o domínio da língua francesa apareciam para
muitos como a aquisição de capital adicional. Muitos escritores
estabeleciam contato direto com Paris e editores franceses. Muitos escritores
oriundos de famílias tradicionais e de grande capital econômico
na área rural freqüentavam a capital francesa com assiduidade. Alguns
chegavam a morar em Paris durante parte do ano. O escritor Afonso Arinos, bastante
engajado no tema do sertão, tendo sido designado por "caçador
de matutos", conjugava o gosto pelo cosmopolitismo francês e as viagens
pelo interior dos sertões mineiros, que serviam de base para seus livros.
Os Sertões transformou-se rapidamente num best-selller,
esgotando-se a primeira edição de mil e duzentos exemplares rapidamente.
O preço de capa da primeira edição ficou em torno de dez
mil réis. Ainda segundo Bragança, "feitas as contas, coube
ao autor o saldo de 2:198$750, que lhe foi pago em 25/04/1903 (conforme documentação
da editora; o original do recibo foi doado, como outros documentos relacionados
com Euclides, à Academia Brasileira de Letras). Assim, o lucro líquido
do Autor foi de 698$750 (...)".
A segunda edição foi lançada em
9 de junho de 1903, depois de negociações com os editores, onde
estes pagaram antecipadamente os direitos autorais por R 1:600$000, numa tiragem
de 2.000 exemplares. Em 1905, surgiu a terceira edição, numa tiragem
também de 2.000 exemplares. Assim, a tiragem total das edições
Laemmert atingiu 5.200 exemplares. O número de edições
e o total de 5.200 exemplares lançados pela Laemmert expressam, como
assinalou Bragança, um dos maiores sucessos de vendas no restrito mercado
livreiro do início do século no Brasil. As três edições
foram vendidas em aproximadamente cinco anos. A Laemmert não chegou a
fazer uma quarta edição, pois um incêndio destruiu suas
instalações. O livro passou a ser editado a partir de 1911, com
a quarta edição, pela Editora Francisco Alves.
Bragança relata que para a terceira edição,
Euclides da Cunha cedeu a "propriedade plena e inteira" de Os Sertões
à Laemmert & Cia por 1:800$000, garantindo que de cada edição
que se fizesse lhe seriam reservados cinquenta volumes. Com esta cessão
definitiva o Autor e seus herdeiros ficaram excluídos das vantagens a
que teriam direito regularmente com as edições futuras da obra.
Embora este fato cause estranheza, uma vez que o livro continuava a ser um sucesso
de vendas, Bragança assinala as dificuldades financeiras em que se encontrava
Euclides no período como uma das possíveis razões de sua
atitude. Em carta a seu pai, Euclides admite ter aceito a proposta da Laemmert
por precisar pagar dívidas e fazer um seguro de vida. Além disso,
considerava não perder nada "porque num primeiro livro só
se aspira a um lucro de ordem moral e este, eu tive de sobra". Este "lucro
de ordem moral" seria o de ter atingido o topo da hierarquia no campo literário
em carreira meteórica. Desconhecido em 1902, ele era eleito para a Academia
Brasileira de Letras em 1903 e ingressava no Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro.
3- A consagração no campo literário:
Entre os mecanismos de consagração das
obras literárias no período estava a crítica literária.
Três críticos se destacavam procurando inovar e afirmar uma crítica
mais consistente, calcada em critérios científicos: José
Veríssimo, Araripe Júnior e Sílvio Romero. Esses três
intelectuais tinham muitos pontos em comum e também muitas diferenças.
Com relação à trajetória social, todos os três
fizeram o mesmo movimento de migração do interior para a capital,
o Rio de Janeiro, no litoral. Tiveram que lutar por espaço numa sociedade
onde os círculos eram fechados e onde a vida literária ficava
circunscrita a cafés e livrarias da rua do Ouvidor. Com maior ou menor
intensidade dependendo do caso, os três estavam preocupados em afirmar
novos critérios para o julgamento de obras literárias que se pautassem
por argumentos científicos e não pela sociedade do elogio mútuo.
A bandeira da ciência os irmanava e isso se expressaria na consagração
de Os Sertões. O livro de Euclides da Cunha parecia ser uma obra à
altura de suas pretensões modernizadoras.
O primeiro ensaio crítico partiu de José
Veríssimo no Correio da Manhã; pequeno, mas contundente. Entre
outras observações, Veríssimo era definitivo ao considerar
"o livro do Sr Euclides da Cunha, ao mesmo tempo o livro de um homem de
ciência, um geógrafo, um geólogo, um etnógrafo; de
um homem de pensamento, um filósofo, um sociólogo, um historiador;
e de um homem de sentimento, um poeta, um romancista, um artista, que sabe ver
e descrever, que vibra e sente tanto aos aspectos da natureza como ao contato
do homem e estremece todo, tocado até ao fundo da alma, comovido até
às lágrimas, em face da dor humana, venha ela das condições
fatais do mundo físico, as secas que assolam os sertões do Norte
brasileiro, venha da estupidez ou da maldade dos homens, como a Campanha de
Canudos".
Pouco depois, em março de 1903, o Jornal do Commércio
estampava a crítica de Araripe Júnior que, além de mais
longa e elaborada, era também mais efusiva e entusiasmada. Segundo Araripe,
Euclides surgia "conquistando o primeiro lugar entre os prosadores da nova
geração." Como José Veríssimo, Araripe Júnior
sublinhava que o livro era o resultado da soma da arte com a ciência,
do épico com o trágico e da emoção com a razão.
O escritor produzira uma obra científica, uma "obra histórica",
mantendo "a continuidade da emoção, sempre crescente, sempre
variada, que sopra rija, de princípio a fim, no transcurso de 634 páginas..."
Ambas as críticas são o primeiro passo
para a monumentalização da obra. Araripe pela primeira vez faz
comparações com obras monumentais da literatura como o Conde de
Monte Cristo, de Alexandre Dumas, e Mistérios do Povo, de Eugênio
Sue. Particularmente, a crítica de Araripe busca tecer alguns argumentos
de autoridade de caráter científico para a consagração
de Os Sertões. Para Araripe, o texto de Euclides da Cunha continha valor
especial por se tratar de pesquisa feita no próprio local, o que não
era habitual na ocasião. Euclides da Cunha era um pesquisador "que
viu", "que experimentou as agruras da guerra", refletindo sobre
uma realidade que observou. O fato de haver presenciado os fatos como repórter
e de ter utilizado moderno instrumental científico era reiterado diversas
vezes como qualidade importante. "Ele viu, segurou, surpreendeu em flagrante,
em todas as suas variedades, descrevendo-os agora na mais bela síntese
que se tem feito no Brasil dos habitantes dos sertões, esses membros
de uma sociedade, como diz o próprio autor, de todo estranha ao Brasil
organizado em nação." Ou ainda: "O sr. Euclides da Cunha
observou de perto, estudou como filósofo, viu os efeitos..."
Tanto José Veríssimo quanto Araripe Júnior
sublinhavam o que consideravam decisivo para a consagração do
livro: Os Sertões era um livro de ciência e de arte. Estas duas
primeiras críticas desempenharam o importante papel de guindar o livro
de estréia de Euclides da Cunha às mais altas posições.
O próprio Euclides da Cunha reconheceu este fato. Ao ler a primeira parte
do ensaio de Araripe, Euclides comentou com amigos ter saído da redação
do jornal onde trabalhava "com o enorme estonteamento de um recruta transmudado
repentinamente num triunfador". Segundo ele, o ensaio de Araripe tinha
tido tamanha repercussão que "no dia seguinte" ele, "que
até então era um engenheiro letrado, tinha se transformado em
escritor". A importância destes ensaios para a consagração
de Os Sertões foi minuciosamente descrita no artigo "O livro que
abalou o Brasil: a consagração de Os Sertões na virada
do século" publicado na Revista História, Ciências,
Saúde, vol. V, de julho de 1998. Outros passos foram dados até
que a afirmação de Os Sertões como obra prima da literatura
e como "monumento nacional" fosse efetivada. Gostaria de discorrer
aqui sobre a contribuição de Sílvio Romero neste processo.
Enquanto Veríssimo e Araripe foram decisivos para a consagração
do livro no momento de seu lançamento, a participação de
Sílvio Romero se deu um pouco mais tarde, em 1906, quando Euclides já
eleito para a Academia Brasileira de Letras foi recebido pelos acadêmicos.
A sessão solene ocorreu no dia 18 de dezembro de 1906 e Romero foi o
responsável pelo discurso de recepção. Sílvio Romero,
um dos mais respeitados críticos do período, indagava em seu discurso
qual "a grande lição" que Os Sertões teria dado
ao país. No seu entender, "a grande lição" consistiu
em "mostrar que os homens inteligentes deveriam voltar-se para o Brasil
social, onde pulsa a mor intensidade dos problemas nacionais, que exigem solução,
sob pena, senão de morte, de retardamento indefinido no aspirar ao progresso,
no avançar para o futuro". Voltar-se para o "Brasil social"
significava "reformar pela base, pelo alicerce" em oposição
à atitude de "reformar pelas cimalhas", conceito que Romero
retira do próprio Euclides.
O "Brasil social" era identificado com "as
populações sertanejas", a "maior parte da nação",
"aquela que tem mantido a nossa independência; porque é aquela
que sempre trabalhou, sempre se bateu e ainda bate...". O "Brasil
social" teria se formado historicamente a partir do modelo de colonização
implantado no país. Os colonizadores, acostumados com o comércio,
o pastoreio e a produção agrícola, aqui procuraram seguir
o mesmo modelo de economia agropastoril. Condições adversas de
clima, de solo, de comunicações transformaram essa economia numa
"cultura rude e penosa". Recorreram para o trabalho pesado à
"força do cativeiro de índios e negros". Formaram-se,
assim, três grupos: os escravos, os "colonos reinóis de gradações
várias e categorias várias, que se encarregavam do suavíssimo
esforço de mandar"; e um grupo intermediário que concentrava
a maior parte da população, "o grosso proletariado rural
- não escravo". Esse grupo "não possuía um palmo
de terra, porque esta foi desde o começo ficando açambarcada em
enormes latifúndios pelos concessionários de sesmarias intérminas"
e teve "fatalmente de acostar-se, como agregado, à patronagem dos
grandes proprietários". A esse proletariado rural teriam vindo somar-se
"os ex-escravos" recentemente libertados em 1888. Lembremo-nos de
que na ocasião em que Romero proferia seu discurso apenas 189 anos haviam
transcorrido desde o fim da escravidão. Sentiam-se no país ainda
fortemente as conseqüências do fim do regime de mão-de-obra
escrava, sem que tivesse havido um projeto de realocação da força
de trabalho liberta.
Como decorrência dessa "anomalia inicial",
originaram-se "várias antinomias" que faziam o país
"manquejar". A primeira delas seria "a disparidade entre uma
pequena elite de possuidores e proprietários e o avultadíssimo
número de analfabetos ou incultos que constituem a nação
por toda a parte". Romero assinalava enorme desvalorização
com relação às "gentes do centro" difundida pelos
meios de comunicação. "Intelectuais de toda a casta"
falariam mal das "gentes do centro, sertanejos ou não", "produzindo
soma incalculável de males, desviando os governos, e todos os que disso
podiam curar, de cumprir o seu dever para com a maioria da população
nacional". O crítico aproveitava a ocasião para fazer contundente
discurso de valorização das populações sertanejas,
em que se percebe o quanto o livro de Euclides da Cunha havia contribuído
para fortalecer o pólo alternativo aos valores calcados na civilização
européia e no culto às cidades cosmopolitas, expressões
de modernização e progresso. Os intelectuais deviam voltar seus
olhos para o centro do país, onde estava a "autêntica"
cultura rústica dos sertanejos e onde a fauna e a flora tropicais se
manifestavam em sua selvagem exuberância.
O ponto-chave do discurso relacionava-se, portanto,
à oposição formulada por Euclides entre o litoral e o sertão.
Romero ampliava o sentido dessa oposição. Para ele, o sertão
era o "Brasil social", enquanto o litoral era o "Brasil da politicagem".
Ao narrar a história do sertão que desaguou na guerra de Canudos,
Euclides ancorava-se segundo ele no que o país tinha de mais autêntico,
sua população sertaneja. A narrativa épica do Brasil autêntico
seria pois garantia para a autenticidade do livro e um dos elementos importantes
para sua monumentalização.
Euclides, engenheiro, militar, herói da República,
que a esse movimento se ligou logo nos primeiros momentos, ainda cadete da Escola
Militar, homem de ciência, sério e austero, avesso a pedidos e
empenhos, distante dos padrinhos e da rua do Ouvidor, reunia todas as condições
para se transformar em porta-voz dos interesses e anseios de intelectuais que,
como Romero, procuravam fazer com que fosse conferido outro estatuto ao Brasil
da área rural. Romero contrastava duas visões que implicavam representações
diversas do nacional. Uma que enfatizava os ideais de progresso e civilização,
baseada num modelo universalista e cosmopolita das grandes reformas urbanas,
das obras que difundiam novas regras de higiene e bom-gosto. Outra, que procurava
construir as nações com base na busca de suas singularidades,
fossem elas da ordem da natureza ou da ordem das antigas tradições
populares, consideradas genuínas fontes da nacionalidade. A diferença
era de ênfase: unificar a partir do molde europeu ou construir alternativa
própria, sui-generis, tropical. No primeiro pólo, estava a maior
parte da elite política do período, seduzida pelas maravilhas
da técnica e da civilização que buscava copiar da Europa.
No segundo, intelectuais como Sílvio Romero, Euclides da Cunha e Araripe
Júnior.
Euclides teria fornecido algumas chaves para a compreensão
do "problema brasileiro", segundo Romero, que propunha uma espécie
de geografia econômica da nação. Efetivamente, crescia a
idéia de que no centro do território estava o cerne da nacionalidade,
idéia muito difundida posteriormente e que legitimou diversos projetos
de governo, inclusive a mudança da capital para Brasília.
Em última análise, a entronização
de Euclides da Cunha na Academia Brasileira de Letras rep
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