Canudos de Antônio Conselheiro é um exemplo de uma experiência social que incomodou
o sistema político, social e econômico brasileiro nos primórdios da República,
entre 1893 e 1897.
As populações marginalizadas e esquecidas do sertão do Nordeste do Brasil encontraram
na pregação do místico Conselheiro uma esperança de vida melhor. A sociedade
canudense resistiu, até o fim, aos assédios das tropas do Exército enviadas
para destruí-la. Canudos se diferenciava da sociedade da época e o conhecimento
das suas relações sociais e das suas relações com o espaço imediato (o lugar),
interessa ao geógrafo e a todos que querem entender a história das comunidades
humanas marginalizadas e pobres no Brasil.
PALAVRAS CHAVES: misticismo, relações sociedade-espaço imediato, resistência
social, populações pobres, sertão.
CANUDOS CITY OF THE ANTONIO CONSELHEIRO:
Concise reflections about a troublesome space of connections.
ABSTRACT
Canudos city of the Antônio Conselheiro is an exemplification
of a social experience that troubled the Brazilian Establishment in the beginning
of the Republic, from 1893 to 1897.
In Brazil Northeastern, the Backland´s population had been forgotten
by the Central Government, they found through act of preaching of the mystic
Conselheiro a the hope of the best life. The canudense society resisted, fought
to the bitter end, before the siege from storm troops Army have sent for to
destroy it. The canudense society was different from that brazilian society
then and the knowledge about the social relations and the connections of society
and proximate space (the place) in that community, it is interest to the geographers
and everybody those are wanting to understand about the poors and forsakes human
communities history in Brazil.
KEYWORDS:Mysticism, society and proximate space, social
resistence, poors populations, Backland.
As relações de um agrupamento social humano com o espaço geográfico
onde vive passam necessariamente pelo tipo de relação predominante existente
no interior deste agrupamento, isto é, a relação dos homens entre si. O espaço
geográfico e mesmo a natureza, neste caso vista como o componente elementar
primário, deixaram de ser entendidos como substratos nos quais se assentam e
se desenvolvem as sociedades humanas determinando-lhes a organização social
e econômica.
Sob a perspectiva dialética do processo histórico, são as relações
sócio-econômicas que nos permitem entender como uma sociedade se comporta no
seu espaço geográfico, ou mais propriamente ainda, no seu lugar, ou quais os
vínculos que mantém com este lugar.
Dentro desta mesma perspectiva, ocorre uma série de estruturas
que serve para dar legitimidade àquelas relações, sejam elas sociedade-natureza
(ou sociedade-lugar) ou dos homens entre si, permeando os valores aceitos, regulando
os direitos e deveres e consubstanciando as idéias e aspirações do grupo social
dominante. Compreender a dinâmica dessas relações e dessas estruturas, bem como
as idéias e aspirações do grupo social, nos possibilita atingir a visão do mundo
que aquela sociedade possui e explicar o processo histórico em que ela se acha
inserida.
Com base nestes elementos, mesmo com relação a grupos sociais
pretéritos, como no caso de Canudos, é possível reelaborar a sua organização
espacial e entender como se processavam as relações no interior da sociedade
e desta com seu espaço geográfico imediato.
O SERTÃO E ANTÔNIO CONSELHEIRO
O sertão do Nordeste Brasileiro enquadra-se entre as regiões do
mundo que se caracterizam pelo clima semi-árido, cujos índices pluviométricos
são baixos quando comparados com os das zonas tropicais úmidas, além de irregulares
e concentrados. A irregularidade estacional das chuvas significa, entre outras
coisas, que um período de estiagem pode ser amplamente dilatado, prolongando-se
por um ou mais anos sem qualquer precipitação pluvial. Em consequência disso,
a vegetação característica destas paragens, xerófita por adaptação, praticamente
desaparece, ou quase, entrando num estado de latência, numa alta especialização
capaz de sobreviver por longos períodos secos, para de novo aflorar, com rapidez,
após as primeiras chuvas.
A paisagem típica que se apresenta aos olhos de um observador
ocasional é de desolação e morte. O amarelo-pardo da vegetação ressequida predomina
ao longo das estradas, numa repetição monótona, mimetizando-se com o solo pedregoso
e com as formas do modelado do relevo, onde os tabuleiros isolados dominam os
largos vales de cursos d´água intermitentes, os chamados "cortados", que formam
sinuosos caminhos arenosos ou pedregosos ao longo dos leitos secos.
Desde a colonização, quando estas vastas regiões interioranas
foram ocupadas pelo homem vindo do litoral, acompanhando os rebanhos, ou vindos
do sul, através do rio São Francisco, na cata do ouro ou na busca de índios
para escravizá-los, ali se formou uma sociedade diferenciada. O isolamento e
as relações sociais e econômicas que regiam aqueles agrupamentos humanos foram
determinantes na interação homem-meio natural, expressa num misticismo centrado
nas forças telúricas que ali impregnam vivamente a percepção e o cotidiano daquela
gente.
Escreve FACÓ (1965) que o monopólio da terra e uma economia monocultora,
voltada para a exportação, entravaram o crescimento das forças produtivas naquela
região brasileira. O trabalho semi-servil e as limitações impostas pelo latifúndio
imobilizavam aquela sociedade. Diz ele que o atraso cultural (na perspectiva
da cultura dominante), o isolamento e a estagnação por quatro séculos geraram
a ignorância completa do mundo exterior e o analfabetismo quase geral. Diz ainda
FACÓ (1965, 17) que "a única forma de consciência do mundo, da natureza, da
sociedade, da vida, que possuíam as populações interioranas, era dada pela religião
ou por seitas nascidas nas próprias comunidades rurais, variantes do catolicismo".
A situação do Nordeste Brasileiro se agravou mais ainda a partir
da segunda metade do século XIX, quando o centro de gravidade econômica do país
foi gradativamente transferido para o Sul (Sudeste). Enquanto no Sul (Sudeste)
o desenvolvimento capitalista experimentava novas formas de relações das classes
sociais, no Nordeste caracterizava-se pela lenta evolução de uma sociedade em
estágio econômico pré-capitalista. As relações de classes restringiam-se entre
o latifundiário, proprietário das grandes extensões de terras e o homem sem
terra, que correspondia à grande maioria da população. Para este, havia poucas
opções de sobrevivência, em especial quando a seca e a falta de trabalho o obrigavam
a emigrar. Se não conseguia meios para ir aos seringais amazônicos ou aos cafezais
paulistas, restava-lhe a tentativa de se alojar nos miseráveis subúrbios das
cidades nordestinas do litoral. A precariedade e a fome aliavam-se para desestimular
a esperança de uma nova vida nesses centros urbanos da zona marítima, devido
ao atraso e à estagnação econômica.
Para o homem do sertão que, segundo MACHADO (1969, 28), "penetrou
na caatinga para fugir ao jugo do senhor latifundiário", a luta pela vida passava
pelo limite da dignidade pessoal. Preferia morrer pelas estradas faminto, abandonar
sua terra, a ter de submeter-se ao jugo do "coronel" dono de terras. Diz MACHADO
(1969, 34-35) que o sertanejo "trazia no íntimo a esperança de uma esperança,
de uma felicidade distante. Buscava no fantástico a solução de seus problemas".
Neste ponto crucial, ele podia seguir dois caminhos: ou descambava para o franco
bandoleirismo, ou encontrava nova razão de vida no primeiro messias que surgisse
a sua frente. Ali, ele encontrava segurança e proteção. Encontrava respaldo
para suas angústias e tristezas. O linguajar do místico era o seu linguajar.
O sertanejo então se fanatizava e por este líder espiritual era capaz de tudo.
O misticismo tornou-se assim, no desenrolar dos dramas sociais do sertanejo,
um elemento de união.
Os vários exemplos motivados pelas crises de ordem econômica,
ideológica ou de autoridade, como explica FACÓ (op.cit.), abrangem milhares
de campesinos de vastas áreas interioranas do Brasil, entre o último quartel
do século XIX e o primeiro deste século. Assim foram Canudos, Juazeiro, o Contestado,
Caldeirão, Pau de Colher e Pedra Bonita.
Desta forma, o fenômeno do misticismo centrado em Antônio Conselheiro
e Canudos não foi de modo algum excepcional. Muito pelo contrário, todos os
ingredientes ali estavam prontos para dinamizar o processo histórico da experiência
canudense.
Antônio Vicente Mendes Maciel, o Conselheiro, era oriundo de "uma
família numerosa de homens válidos, ágeis, inteligentes e bravos, vivendo de
vaqueirice e pequena criação". É desta maneira que o descreve EUCLIDES DA CUNHA,
em OS SERTÕES. É ainda Euclides que afirma que o pai do Conselheiro possuía
uma "honradez proverbial", educando-o de modo a não envolvê-lo na luta entre
sua família e a poderosa família dos Araújos.
Antônio Maciel teve uma adolescência relativamente tranquila,
apesar de órfão de mãe e de mais tarde ter se queixado dos maltratos da madrasta.
Contudo, depreende-se do relato em OS SERTÕES que ele possuía a mesma honradez
paterna, assumindo a proteção das três irmãs solteiras após a morte de seu pai.
Se o escritor de OS SERTÕES encontra uma "tremenda tara hereditária"
em Antônio Maciel, que aflora no jovem após um malfadado matrimônio, é no mínimo
contraditório afirmar que este possuía "um caráter que se não deixa abater",
como escreve o próprio Euclides.
Entretanto, a postura de Euclides da Cunha revela a própria visão
da classe dominante da época com relação a um "líder" ou segundo GRAMSCI, um
"intelectual orgânico" que se identificava com as classes sociais mais pobres
e marginalizadas. Ao longo de OS SERTÕES podemos arrolar dezenas de adjetivos
pejorativos consignados a Antônio Conselheiro.
Para Euclides da Cunha e para as classes que ele representa, o
Conselheiro era, entre outras coisas, o bronco, o bufão, o truanesco, o esmaniado,
o desnorteado apóstolo, o grande homem pelo avesso, o retrógrado do sertão,
um dissidente, o fetiche de carne e osso, o bonzo claudicante, o dominador,
o desequilibrado, etc.
Encontramos ainda, em OS SERTÕES, uma alusão ao Conselheiro retirada
da Folhinha Laemmert, de 1897, que diz ser ele "homem inteligente, mas sem cultura".
Isso por si só expressa o preconceito arraigado em nossa intelligentsia, não
só da época em que viveu Euclides da Cunha, mas até nossos dias.
Por outro lado, o comportamento de Antônio Conselheiro, como se
pode extrair da narrativa de OS SERTÕES, nos revela um homem plácido, estóico
e de certa forma inofensivo. Alguns pesquisadores de Canudos, no entanto admitem,
com base em relatos de sobreviventes, que Antônio Conselheiro apresentava, de
vez em quando, um comportamento agressivo.
Para o povo, Antônio Conselheiro não era só um homem santo, era
o "árbitro incondicional de todas as divergências ou brigas, conselheiro predileto
em todas as decisões", como escreve Euclides em OS SERTÕES.
Entretanto, este homem "sem cultura", é bom lembrar, como escreve
NOGUEIRA (1978), praticou diversas profissões ascendentes como: escrivão, solicitador
e rábula, tendo até chegado a lecionar português, aritmética e geografia, numa
fazenda.
Poucos autores falam da tentativa de Antônio Maciel em reconstruir
uma família. SOLA (1989), num recente trabalho sobre o fenômeno de Canudos,
relata que o Conselheiro, antes de partir definitivamente para sua peregrinação,
optando por uma vida dedicada a pregar o evangelho, conheceu uma mulher chamada
Joana Imaginária, uma beata que dedicava-se a esculpir imagens de santos. Apesar
de ter nascido um filho desta união, o fato é que ela não deu certo e isso com
certeza aumentou a desilusão no espírito de Antônio Maciel. A partir de então,
tomou rumo ignorado e por dez anos perambulou pelos sertões, para surgir mais
tarde em Pernambuco, Sergipe e Bahia, transfigurado em "evangelizador dos sertões".
Existem evidências que levam a crer que Antônio Maciel sofreu grande influência
do padre Ibiapina e que por muito tempo fez parte das inúmeras romarias que
percorriam o sertão nordestino, primeiro como mascate, depois como penitente
e a partir de 1871 (com base nas primeiras notícias na imprensa), como beato
e conselheiro.
CANUDOS - UMA RECONSTITUIÇÃO SOCIAL E ESPACIAL
O jornalista Júlio CHIAVENATO (1989, 97) escreve que "Antônio
Conselheiro é um dos personagens mais caluniados da história do Brasil". Nas
suas andanças pelo sertão não pregava apenas o evangelho. Acompanhado de uma
pequena multidão de marginalizados, ex-escravos e vagabundos, construiu cemitérios,
açudes e igrejas, cuja arquitetura era admirada. Sua imagem era bem conhecida
e impressionava. Com uma surrada bata de brim azul, alpercatas e bordão, as
barbas grisalhas e os cabelos longos em desalinho, vivendo frugalmente, inspirava
respeito e com o dom de oratória ele cativava o sertanejo sofrido, pois falava
a sua linguagem, contra as injustiças das leis, na crença numa vida melhor,
na luta entre o bem e o mal e na necessidade de trazer o céu para a terra. Sua
pregação o aproximava de um cristianismo primitivo e isso incomodava o clero
que o proibiu de pregar em suas igrejas. Antônio Conselheiro acatou tranquilamente
essa e outras formas de perseguições movidas pelo poder dominante.
Após a proclamação da República a vida do sertanejo em nada mudou.
Os grandes latifúndios continuavam poderosos e a população pobre e sem acesso
à terra, tão marginalizada quanto antes, no Império
Os incidentes na Bahia, em Natuba (atual Nova Soure), Ribeira
do Amparo e Bom Conselho (atual Cícero Dantas), quando nestas localidades Antônio
Conselheiro conclamou a multidão que o ouvia na praça a queimar os editais de
novos impostos afixados pelo governo republicano, motivaram as autoridades a
perseguirem-no. Um destacamento de trinta policiais tentou prendê-lo em Masseté,
mas foi escorraçado pela multidão. Curiosamente, o primeiro policial a bater
em retirada foi o próprio comandante do destacamento, tenente Virgílio Pereira.
Em seguida foram enviados cerca de 80 soldados do Exército para Serrinha, comandados
pelo tenente João Camilo de Souza Freitas, com o objetivo de capturar o Conselheiro,
o que no entanto deixou de ser feito devido às informações contraditórias que
ali chegaram sobre o beato e seus seguidores e de uma ordem do governo para
suspender a missão de captura.
A partir de então, Conselheiro se deslocou com seu séquito para
a região de Canudos, Alto Sertão Bahiano, um lugar o mais inóspito possível,
longe das garras das autoridades, dos impostos, das leis que impunham um novo
regime, e ali desejava viver em paz com sua gente.
No pequeno povoado de Canudos, lugar que certamente já conhecia
e por onde passara algumas vezes em suas andanças, Antônio Conselheiro se alojou
com sua gente.
O arraial de Canudos ficava nas proximidades de uma antiga e decadente
fazenda de criação, às margens do vale médio do rio Vaza-Barris. Antônio Conselheiro,
ao se alojar na pequena localidade, dominando-a, passou a chamá-la Belo Monte,
que entretanto, ficou mais conhecida como CANUDOS, seu nome original, nome esse
devido à presença de uma vegetação ribeirinha que ali crescia, espécie de bambu
utilizado para a confecção de "pitos" de cachimbo. Era o mês de junho de 1893.
O sítio de Belo Monte correspondia ao vale médio do Vaza-Barris,
onde o leito deste rio atingia cem metros de largura nos raros períodos de chuva.
Alguns autores notam que, se Antônio Conselheiro desejasse preparar uma cidade-fortaleza,
poderia ter optado por erigir sua Belo Monte em torno da sede abandonada da
antiga fazenda, ´à cavaleiro´, nas encostas dos morros que dominavam o vale
do rio. Entretanto, como explica NOGUEIRA (op.cit.), o Conselheiro escolheu
um "sítio para trabalho", isto é, o vale do Vaza-Barris. No período de estiagem,
apesar do leito ficar seco, havia ali a facilidade de se abrirem cacimbas que
alcançavam o lençol subterrâneo a pouca profundidade. Por outro lado, com base
em outras informações fidedignas, podemos inferir que a opção de escolha para
o sítio da cidade não foi uma decisão premeditada do Conselheiro. A povoação
de Canudos já existia e sobre este fato há notícias em jornais da época desde
1891, conforme nos relatou oralmente o professor José CALAZANS, o maior estudioso
vivo de Canudos. Ainda segundo CALAZANS, há informações de que ocorreram missões
franciscanas na região entre 1860 e 1870. Como essas missões sacramentais ocorriam
tão somente para núcleos povoados, podemos imaginar que um povoado chamado Canudos
já existia antes de 1893.
Para CALAZANS, existe a possibilidade de que as terras de Canudos
tenham pertencido à Casa da Torre, na época da colonização portuguesa.
Nesta mesma vertente de opinião encontramos ATAÍDE (1993, 56),
que esclarece que Belo Monte "originou-se de um povoado inicial constituído
de cerca de 50 casas, em junho de 1893, quando recebeu o séquito de Antônio
Conselheiro". A partir de então passa a existir Belo Monte.
O crescimento de Canudos, rebatizada de Belo Monte, a partir da
chegada do Conselheiro, foi vertiginoso. O casario se espalhou pelo vale e pelas
encostas adjacentes, ao longo da porção esquerda do rio. As casas eram feitas
de pau-a-pique, simples e comuns às habitações encontradas por todo o sertão
baiano. Ainda, segundo CALAZANS, existiam construções melhores, cobertas com
telhas ("casas caiadas"), como as casas de comércio de Antônio Vilanova, de
Macambira e João Abade. Estes homens certamente faziam parte de um grupo de
moradores privilegiados que tinham suas casas situadas próximas à praça das
igrejas. ATAÍDE (1993, 61) escreve que existiam outros seguimentos privilegiados
na população canudense: os beatos e os auxiliares dos ofícios religiosos, seguidos
dos "valentes e destemidos vaqueiros, jagunços e perseguidos pela polícia".
Entre estes estão Pajeú e João Grande. Porém, a grande maioria da população
era constituída de campesinos empobrecidos que formavam a mão-de-obra disponível.
Escreve EUCLIDES DA CUNHA, em OS SERTÕES, que a única rua que
merecia esse nome e desembocava na praça da Igreja era a Campo Alegre, mas,
conforme nos informou CALAZANS, existiram em Canudos outras ruas propriamente
ditas, inclusive algumas com "nomes" como: rua da Professora, rua dos Pretos,
rua do Sapateiro, rua do Comércio, etc.
No mais, a urbanização parecia caótica, com pequenas ruelas, becos
sem saída e passagens estreitas, onde o alinhamento das casas não obedecia a
qualquer padrão ou plano. Um número considerável destas casas sequer apresentavam
janelas, mas apenas a abertura da porta, o que não tinha tanto significado numa
sociedade onde a segurança contra roubos se fazia desnecessária, na medida em
que não haviam objetos de valores para roubar. Além disso, o calor reinante
durante o dia obrigava-os a manterem as portas abertas. Os móveis e utensílios
domésticos dos canudenses eram os mais toscos e essenciais possíveis. Apesar
de pobre, a população de Canudos tinha o necessário para sobreviver com dignidade.
Alguns autores como SOLA, CHIAVENATO e NOGUEIRA, nos passam a idéia de que em
Canudos não existiam quaisquer tipos de impostos ou autoridade que lhes confiscassem
os parcos bens ou produtos do trabalho. O Conselheiro nada lhes pedia. Isso
explicaria porque Canudos, apesar de sua população pobre, conseguia manter-se.
Por outro lado, autores como ATAÍDE (op.cit.), citando Manuel
Benício (um dos maiores estudiosos sobre Canudos e contemporâneo do Conselheiro),
diz que Antônio Conselheiro recebia dos negociantes que saíam para as feiras
fora de Canudos, bem como dos trabalhadores de empreitadas, um terço dos lucros,
destinados à alimentação da comunidade.
EUCLIDES DA CUNHA, na sua perspectiva, descreve a cidade e as
suas moradias com preconceito. Sua postura comprova que ele desconhecia que
aquela "urbs monstruosa" ou aquela "civitas sinistra do erro" com suas casas
que "eram paródia grosseira da antiga moradia romana" era o resultado de uma
cultura e expressão material de uma comunidade que possuía seus próprios valores,
necessidades e relações com o meio ambiente, o lugar de onde ela tirava o que
precisava para a sua sobrevivência. Pode-se imaginar também que, devido ao grande
número de famílias que se dirigiam a Canudos, atraídas pela pregação de Conselheiro,
as casas para abrigar essa gente possivelmente eram feitas em mutirão e às pressas,
de forma extremamente rudimentar, utilizando-se tão somente dos meios disponíveis
do lugar, sabidamente pobre em recursos naturais. Isso explicaria a desordem
urbanística e os tipos de construções da maioria das casas que se esparramavam
pelas periferias do arraial do Belo Monte. Daí a impressão causada em EUCLIDES
DA CUNHA que observa, em OS SERTÕES, a "pobreza repugnante" daquelas "taperas",
verdadeiras "tocas" impróprias para seres humanos habitarem. Devemos reconhecer,
entretanto, que fica difícil para alguém que tenha uma outra visão do mundo
(como Euclides da Cunha neste caso), fazer uma justa avaliação dos valores daquela
gente, de suas necessidades e satisfações.
Alguns críticos usam este fato para afirmar que havia sim, em
Canudos, diferenças sociais, cabendo aos "pobres" as habitações mais toscas
e afastadas e aos "ricos" as casas telhadas e caiadas mais próximas da praça
das igrejas. O que se sabe, através de relatos de sobreviventes, é que havia
em Canudos comércio de imóveis (compra, venda e aluguel) e evidentemente que,
quem tinha mais dinheiro conseguia uma habitação melhor.
Por outro lado, o mesmo Euclides da Cunha (em Os Sertões), se
contradiz ao afirmar que a sociedade canudense "era o homízio de flamigerados
facínoras" de ociosos e vagabundos. Mais adiante, ainda em OS SERTÕES, o escritor
relata que logo cedo, "ao despontar da manhã distribuíam-se os trabalhos" e,
em grupos, "partiam felizes" com suas ferramentas e armas.
Desta forma, podemos duvidar que os canudenses empreendessem saques
sistemáticos nas fazendas das redondezas ou em cidades próximas. Praticamente
auto-suficiente, a população de Canudos trabalhava sob um regime de coletivismo,
nas roças, na criação do numeroso rebanho caprino, nas pequenas forjas, na construção
de casas e da nova igreja. Além disso, recebia doações que chegavam de várias
localidades, desde as redondezas até de outros Estados nordestinos. Se atentarmos
para a ética e moral dos canudenses, o rigor da ortodoxia pregada por Antônio
Conselheiro, particularmente com relação ao roubo, certamente pesava sobre as
ações e os comportamentos individuais da sua população. Um bom exemplo disto
pode ser observado quando da debandada da expedição Moreira Cesar (3a. expedição
punitiva). Dos cadáveres dos soldados mortos os canudenses só retiraram as armas
e munições. Documentos, dinheiro e outros valores não foram sequer tocados e
meses mais tarde, com o avanço da quarta expedição, esse fato foi constatado
na medida em que os militares tentavam fazer o reconhecimento dos corpos mortos
e ressequidos encontrados pelos caminhos.
Ainda mais, não haveria motivos para criar atritos com as populações
das redondezas, perdendo com isso o seu apoio ou pelo menos para não chamar
a atenção das autoridades sobre Canudos. Se houve alguns saques, certamente
se constituiram em atos isolados e sem o consentimento do Conselheiro. É preciso
se considerar também, a possibilidade de que a notícia de saques tenha partido
de políticos ou fazendeiros interessados em criar boatos que sensibilizassem
a opinião pública contra os canudenses.
Uma das provas do apoio dado aos canudenses pelas populações sertanejas
foi constatada durante a guerra. A cumplicidade podia ser demonstrada na não
colaboração com as tropas e a facilidade com que agiam os "olheiros", que tudo
informavam ao Conselheiro sobre os movimentos dos soldados, seu armamento, suas
posições, etc. Apesar disto, os militares conseguiram alguns "guias" sertanejos
que, forçados ou não, acompanharam as tropas.
Se a urbanização caótica de Canudos não foi intencional, ao que
parece, revelou-se contudo uma verdadeira fortaleza, uma armadilha mortal para
as tropas punitivas do governo. Impossibilitou o uso das cargas de cavalaria
ou os avanços maciços da infantaria, conforme as melhores normas militares européias
adotadas pelo Exército Nacional, e isso embaraçou os comandos e ampliou as vantagens
para os defensores de Canudos.
UM ESPAÇO SOCIAL INCÔMODO
A sociedade canudense era diferenciada na medida em que se processava
naquele lugar remoto no alto sertão baiano, no último decênio do século XIX,
uma experiência que incomodou o poder do sistema dominante.
Ali, o cidadão não sofria discriminação de classe ou de raça como
acontecia na sociedade brasileira de um modo geral. As leis e as autoridades
eram consagradas pela comunidade em consonância com os valores emanados da visão
místico-religiosa adotada por Antônio Conselheiro, o líder espiritual dos canudenses.
Alguns autores afirmam que em Canudos da época do Conselheiro não havia registros
de crimes violentos, nem roubos ou estupros. Há, contudo, um relato de crime
de morte em Canudos, inclusive com a omissão do próprio Conselheiro. Segundo
CALAZANS, em informações que nos passou oralmente, é conhecido o caso de Antônio
da Mota Coelho, comerciante em Canudos, assassinado por Antônio Vilanova, devido
à desavença originada da concorrência comercial. O crime aconteceu na presença
do Conselheiro, como informaram alguns sobreviventes (Pedrão, Manuel Ciríaco)
sem que ele ousasse tomar alguma atitude de reprovação. Ao que parece, se este
episódio foi verídico, havia em Canudos uma classe de privilegiados (alguns
comerciantes) que lutavam pelo poder e não é improvável que, àquela altura dos
acontecimentos, Antônio Conselheiro já não tivesse em mãos o domínio total da
situação. Há também, sobre este episódio, versões que afirmam ter sido o próprio
Conselheiro o mandante daquele crime.
Mesmo assim, alguns historiadores admitem que havia uma rigidez
moral imposta por Antônio Conselheiro, que chegava a proibir o consumo de bebidas
alcoólicas. Os raros delitos eram levados à praça pública, onde a punição dada
podia ser a de expulsão do infrator da cidade. A cadeia local certamente permanecia
vazia. Apesar da propalada rigidez moral pregada pelo Conselheiro, consta de
relatos orais colhidos de sobreviventes, por CALAZANS, ou de seus descendentes
diretos, que entrevistamos, que o consumo de bebidas alcoólicas em Canudos existia,
apesar de tudo. O famoso episódio descrito por EUCLIDES DA CUNHA em OS SERTÕES
sobre um carregamento de bebidas alcoólicas destruído por populares e os donos
do carregamento escorraçados da cidade, deixou a impressão de que a comunidade
canudense repelia o consumo dessas bebidas. Entretanto, os relatos orais colhidos
nos dão outra explicação para tal episódio. A destruição daquele carregamento
foi feito a mando de Antônio Vilanova, com o objetivo de eliminar a concorrência.
Por outro lado, a comunidade de Canudos tolerava sem discriminações
comportamentos sociais que a sociedade brasileira da época julgava indecentes
ou promíscuos. As ligações amorosas livres e os filhos ilegítimos eram normalmente
aceitos, assim como os casamentos oficializados e os filhos legítimos. Com base
nos registros de casamentos encontrados na igreja de Cumbe (atual Euclides da
Cunha), podemos aferir que a grande maioria dos casais de Canudos optou pelo
matrimônio religioso.
O respeito pela mulher e pelo idoso sempre foi uma norma social
entre os sertanejos e em Canudos não poderia ser diferente. É bom notar que
a violência sobre as mulheres canudenses só foi sentida quando as "tropas libertadoras"
invadiram a cidade e as fizeram prisioneiras. Aí sim, há registros de estupros
e desrespeito aos laços familiares, com a separação forçada de filhos e mães,
com a prática da "adoção" feita pelos soldados com relação às crianças canudenses
sobreviventes, principalmente as brancas do sexo feminino.
Uma sociedade que queria viver em paz e que no seu cotidiano,
no seu lugar, expressava uma experiência social e econômica que incomodou o
sistema dominante, Canudos apresentou certos avanços até então improváveis para
a época. Além das escolas para crianças e adolescentes, havia ali, conforme
alguns relatos, uma escola noturna para a alfabetização de adultos. Os inválidos
para o trabalho e as viúvas sem meios de subsistência eram igualmente protegidos
e sustentados pela comunidade. A própria comunidade como um todo controlava
os meios de produção. Contudo, parece que Canudos não havia conseguido superar
a acumulação inerente do capitalismo comercial. E se houve a acumulação de bens
por indivíduos ou pequenos grupos, estes eram os comerciantes, sem dúvida o
grupo dominante. Apesar disso, acreditamos que a exploração de um grupo social
sobre os demais, naquelas circunstâncias, se processava diferentemente do que
ocorria no restante da sociedade brasileira. A exploração social e econômica,
no sentido capitalista do termo, se existiu em Canudos, estava descaracterizada
como tal, diluída pelo sentimento coletivo emanado do misticismo religioso pregado
por Antônio Conselheiro, pela pressão externa, concretizada pela guerra movida
pelo Estado e pela necessidade de defesa e resistência de toda a comunidade
canudense. Desta forma, a sociedade canudense desconhecia certas figuras sociais
que pululavam nas ruas das cidades não só do Nordeste, mas do Brasil em geral,
como as prostitutas e os mendigos.
Assim, essa sociedade sertaneja rústica, solidária e quase auto-suficiente
preocupou o poder econômico e a Igreja, que assistiam assustados ao esvaziamento
dos latifúndios e templos por famílias inteiras, que se dirigiam como podiam
para Canudos. Em pouco tempo o problema da escassez de mão-de-obra ficou evidente
e a queda dos dízimos das paróquias enfureceu o clero.
A RESISTÊNCIA E O MASSACRE DE UM POVO
A coesão da comunidade canudense estava baseada no misticismo
centrado em Antônio Conselheiro e na liberdade proporcionada por uma sociedade
coletivista que, se não igualitária, era com certeza, solidária e quase homogênea,
exatamente o inverso do que o sertanejo encontrava como norma social predominante,
sob a qual havia nascido e que certamente, como destino irrevogável ele estaria
fadado a viver, ou seja, na miséria, sob o mando dos poderosos, na submissão
e no conformismo. Na visão do poder, Canudos tornara-se um exemplo perigoso.
A Igreja e o poder econômico não podiam tolerar tamanho desvio. A reação do
Estado, através do seu braço armado, seja a polícia ou o Exército, logo se fez
sentir.
Acusações de todo tipo surgiram. Dizia-se que Antônio Conselheiro
e Canudos representavam uma revolta monarquista, uma rebelião de bandos armados
por estrangeiros que pretendiam subverter o sertão e o resto do país, com saques
às cidades e a derrubada do regime republicano, ainda nos seus primórdios. A
manipulação destas mentiras pela imprensa republicana alimentava os boatos e
aumentava as tensões políticas nas grandes cidades do litoral e do sul do país.
A missão "evangélica" do frei João Evangelista de Monte Marciano
resultou num relatório sobre os canudenses pontilhado de preconceitos e inverdades.
O episódio da compra de madeira para a construção da igreja nova de Canudos
foi desencadeado pelo juiz de direito de Juazeiro (Bahia), Arlindo Leôni, com
toda a carga de vingança pessoal e irresponsabilidade pública, jogando com o
prestígio do Exército Nacional numa luta injusta e sangrenta, contra uma população
pacífica que só queria viver e trabalhar em paz.
Se os canudenses pretendessem conquistar espaços, certamente não
ficariam à espera das tropas para combatê-las, defendendo o perímetro urbano
de sua cidade e colocando em perigo suas próprias famílias. Muito pelo contrário,
teriam aproveitado a derrota e a fraqueza (a "fraqueza do governo" como diziam)
das tropas para avançar e dominar áreas mais amplas. Entretanto, o fato de não
fazerem isso desmente cabalmente as mentiras que se propalaram de que os canudenses
do Conselheiro pretendiam invadir esta ou aquela cidade.
A única maneira encontrada pelo sertanejo para se defender e lutar
contra tropas regulares (apesar delas demonstrarem estar despreparadas para
uma campanha militar na caatinga), foi imprimir uma guerra de guerrilhas. Sob
este aspecto, os canudenses tiraram o mais alto proveito. Conheciam com intimidade
o meio onde lutavam. Como possuíam um poder de fogo menor, a guerra irregular,
em pequenos bandos, utilizando ao máximo a mobilidade e o conhecimento do terreno,
deu aos resistentes de Canudos meios para impor sérias derrotas às diversas
expedições punitivas e cada vez mais poderosas, em número de efetivos e armamentos.
Lutando com destemor a ponto de causar a admiração do inimigo,
os canudenses defendiam pois suas casas, seus lares, sua família, seu modo de
vida.
Os prisioneiros canudenses sempre foram altivos, mesmo sabendo
que seriam executados com a "degola" ou queimados vivos. Não se sabe de nenhum
delator entre eles. Sentiam-se superiores (ou pelo menos não se intimidavam)
aos soldados do governo. A sua sociedade era sem dúvida moralmente superior.
Morriam por um ideal, não importa se místico ou não. Lutaram até o fim, ao esgotamento
do último combatente, até o último cartucho disparado por suas Mannlicher e
Comblain tomadas do inimigo. Não houve rendição.
Mesmo após a morte do Conselheiro por "caminheira" (diarréia)
e inanição em 22 de setembro de 1897, cujo corpo foi enterrado no interior do
"Santuário", casa que ficava ao lado da igreja nova e onde habitava o beato,
a resistência canudense contra as investidas do Exército continuou. A resistência,
porém, cessou no dia 5 de outubro de 1897, com a morte dos quatro últimos combatentes
conselheiristas: dois homens feitos, um velho e uma criança, como relata EUCLIDES
DA CUNHA em OS SERTÕES.
A sangrenta luta, que durou quase um ano (1896 a 1897), terminou
com a completa destruição de Canudos e a matança de grande parte de sua população.
Não se sabe quantos canudenses morreram nesta guerra, talvez dez ou quinze mil
mortos, considerando que mais da metade da população de Canudos, que atingiu,
segundo alguns pesquisadores, mais de 25 mil habitantes, era composta de mulheres
e crianças. O Exército, por seu lado, teve mais de cinco mil soldados tombados
em combate e um imenso contingente de feridos.É interessante notar que o número
de oficiais mortos e feridos foi relativamente grande devido ao tipo de guerra
irregular empreendida pelos canudenses, num meio geográfico que dominavam e
também em razão do despreparo do Exército para aquele tipo de luta.
Quanto aos prisioneiros canudenses, principalmente os homens,
foram sumariamente executados através do cruel método da degola ou incinerados
vivos, com a aquiescência dos generais. A maioria das mulheres e crianças foi
poupada através de uma ordem do Marechal Bittencourt, então Ministro da Guerra,
ordem essa que chegou ao "front" antes das últimas investidas sobre Canudos.
REFLEXÕES FINAIS
Canudos não se rebelou contra a República, apesar do discurso
anti-republicano de Antônio Conselheiro, e muito menos queria a volta da Monarquia
ou tentava impor um novo status quo. Apenas resistiu contra as injustiças de
um sistema que marginalizava e considerava aquela população uma "raça inferior".
Resistiu sim, aos assaltos de um exército bem armado que queria simplesmente
destruir aquela comunidade, esquecida nos confins do sertão nordestino. De parte
dos soldados, com certeza, a maioria não possuía sequer um juízo ponderado sobre
os canudenses, e isso inclui o praça recrutado ou o oficial de carreira ou comissionado.
Foram mandados ali para destruírem um inimigo da pátria, como rezavam as falas
dos políticos e dos comandantes. Tinham de "limpar" o nome do Exército da humilhação
das derrotas anteriores. Voltariam cobertos de glórias e recebidos como heróis
da República. Seriam os destruidores do que representava o "atraso" e o "antigo".
Eram eles, os soldados, os representantes da "modernidade" e do "progresso".
A História, acreditavam, seria condescendente com eles e, contra aquela "horda
de bárbaros" tudo valia. Canudos serviu assim, de pretexto, com certeza, para
a consolidação do poder da ala florianista no Exército.
O genocídio praticado pelo Estado brasileiro contra aquela gente
revoltou inúmeros homens lúcidos do próprio sistema. EUCLIDES DA CUNHA compreendeu
o drama dos canudenses em muitos momentos, quando conseguia avançar sobre sua
ideologia e visão do mundo. RUI BARBOSA foi outra voz, apesar de tardia, no
parlamento da República, em discurso que não chegou a proferir, a acusar tamanha
insanidade. Aliás, esta atitude de Rui Barbosa foi no mínimo surpreendente e
contraditória para quem, como acusam alguns historiadores, mandou incinerar
documentos sobre a escravidão no Brasil, negando assim provas históricas inestimáveis.
Mais coerente e incisivo foi MACHADO DE ASSIS, ao escrever libelo defendendo
o sertanejo.
Os correspondentes de guerra, em geral enviados como oficiais
comissionados, que ousavam relatar a verdade dos fatos observados, ou eram censurados
ou enviados de volta do "front".
A marca maior do preconceito foi a exumação do cadáver de Antônio
Conselheiro e o envio de sua cabeça para o estudo pela ciência oficial, comandada
por Nina Rodrigues, fiel à antropometria lombroseana. Era preciso saber o que
continha de anormal no cérebro do beato de Canudos para justificar a matança
e o aniquilamento da cidade que chegou a ser, talvez, a segunda cidade da Bahia
em população (cerca de 25 mil habitantes, se considerarmos uma média de cinco
pessoas por habitação) e que tornara-se o maior centro exportador de peles de
caprinos, trazendo divisas ao Estado e ao país. Os resultados finais das análises
revelaram que o cérebro de Antônio Conselheiro era "normal", para o desapontamento
dos republicanos radicais.
O que aconteceu com as mulheres e crianças prisioneiras da guerra
de Canudos ? Com base nos relatórios do Comitê Patriótico, sediado em Salvador,
sabemos do destino bárbaro imposto àquela gente. Marcadas com o estigma de Canudos,
as mulheres canudenses, após a guerra, perambularam por toda parte como párias
sem destino. Fala-se que muitas conseguiram uma espécie de "carta de alforria"
muitas delas assinadas por Lellis Piedade, homem que dirigiu com coragem o Comitê
Patriótico e que muito ajudou aqueles sobreviventes a conseguirem emprego ou
não sofrerem perseguições. Lellis Piedade fêz sérias denúncias sobre a manipulação
dos prisioneiros sobreviventes da Guerra de Canudos. As crianças e adolescentes,
principalmente do sexo feminino, foram "sorteadas" entre os soldados como troféus
de guerra, levadas para Salvador ou para o Rio de Janeiro, e não raro jogadas
na prostituição ou mendicância.
Como seria Canudos ou Belo Monte se não tivesse ocorrido a guerra
e consequentemente sua destruição?
Considerando que a experiência social canudense teve início em
1893, com a chegada de Antônio Conselheiro, os quatro anos que decorreram até
sua destruição total não foram, ao nosso entender, tempo suficiente para os
necessários ajustes e aperfeiçoamento sociais.
Outra possibilidade possível é que Canudos, mais cedo ou mais
tarde, se integraria ao restante do sistema socio-econômico do país, principalmente
após a morte do Conselheiro. Sob este enfoque não há como ter certeza, apenas
especulações, apesar de existirem certos fatores que possam indicar que ali,
no alto sertão baiano, o Belo Monte de Antônio Conselheiro poderia resultar
numa experiência social diferenciada do restante da sociedade brasileira da
época.
Passados cem anos (1993), as lembranças dos "tempos do Conselheiro"
ainda estão impregnadas naquelas paragens. O sítio original de Belo Monte foi
afogado pelas águas do açude de Cocorobó, em 1968. A população que mora, hoje,
em Nova Canudos, muitos descendentes dos conselheiristas, convive ainda com
a miséria, o desemprego e a desesperança, muito antes desses problemas tornarem-se
comuns ao país inteiro.
Nas escolas, a ordem era evitar-se falar do passado. Pelo menos
até 1989, quando lá estivemos pela primeira vez, nos foi passado isso. Porém,
quando de nossa segunda visita a Canudos, a convite da UNEB (Universidade do
Estado da Bahia), em junho de 1993, aquela situação parece ter mudado e já existem
grupos locais que estão empenhados em reavaliar e manter viva a memória de Canudos
e de Antônio Conselheiro. E o que nos parece promissor é que esses grupos são
liderados por jovens canudenses com o apoio oficial, tanto da prefeitura municipal
como da universidade, apesar das parcas verbas orçamentárias.
Contudo, falta ainda muita coisa para ser feita por via oficial.
Por exemplo, para se chegar a Canudos, até as estradas são precárias, como se
a mancha de tanta vergonha impelisse o poder público a isolar aquela comunidade
e aquele lugar dos olhos do mundo.
Mas, Canudos vive e a voz de Antônio Conselheiro ainda ecoa pelas
caatingas do Cambaio, do Cocorobó, do Canabrava, do morro dos Pelados, do Alto
da Favela, do Alto do Mário e pelas margens secas dos "cortados", como testemunha
de um dos maiores crimes cometidos na História do Brasil.
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