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Profeta do sertão
O polêmico padre Enoque, um dos participantes da Semana Euclidiana, fala
com exclusividade ao DEMOCRATA.
Depois de dez anos tentando seguidamente, a Casa de Cultura Euclides da Cunha
finalmente conseguiu trazer para a Semana Euclidiana este que é considerado
por boa parte da mídia como o "novo Conselheiro". Padre Enoque
Oliveira, dissidente da Igreja Católica, é o líder máximo
do Novo Movimento de Canudos, celebra periodicamente a chamada "Missa de
Canudos" e não poupa críticas à elite brasileira,
inclusive a Igreja Católica. Defendendo a reforma agrária ampla,
geral e irrestrita, também é simpatizante de Che Guevara e não
esconde sua ansiedade por uma revolução social que comece pelo
campesinato. Entre outros temas, padre Enoque fala sobre reforma agrária,
governo Lula e a inevitável comparação a que sempre é
submetido - a de que seria uma espécie de novo Antônio Conselheiro.
A seguir, a entrevista.
O que é o Novo Movimento de Canudos?
"É um trabalho iniciado com minha ida ao sertão. Como estávamos
no palco da guerra, não poderíamos abandonar essa história.
A região de Monte Santo é um centro de romarias com uma carga
religiosa muito grande. O Novo Movimento de Canudos é uma experiência
que eu chamo de bíblico-religiosa, de libertação. Nasceu
tendo em vista o Evangelho, mas buscando caminhar na direção libertária.
É um movimento que nasceu com visitas à região, ao local
da guerra. Trata-se de uma região maior do que o Estado de Sergipe.
Como dissidente, qual a sua relação com a Igreja Católica
atualmente?
"Três vezes me expulsaram. Em Salvador, não me aceitaram.
Em Teresina, com aquele cardeal que está atualmente em Brasília
e que é um reacionário safado, foi a mesma coisa. O que me interessa
na Bíblia são os profetas. Fora dos profetas o que há?
Sacerdotes que mandaram matar Jesus ou João Batista? Os sacerdotes formam
um grupo que tanto mal tem feito à humanidade e que têm ajudado
a enterrar o avanço dos profetas e dos seguidores dos profetas. Meu trabalho
seguiu um caminho de confronto com a tendência sacerdotal.
Falta ação por parte da Igreja na questão agrária?
"As igrejas são estruturas capitalistas a serviço do poder.
Por mais que queiram se defender, as igrejas são estruturas de poder
a serviço do capitalismo. Com tantas mudanças no Terceiro Mundo,
na década de 70, criou-se a Teologia da Libertação e a
opção pelos pobres. Eu era muito ingênuo e as pessoas me
diziam: ´Padre, a Igreja está fazendo isso se aproveitando de uma situação;
é uma jogada política para poder se situar dentro de um momento
histórico´. E eu pensando que era uma coisa séria. Mais tarde
acabaram com a Teologia da Libertação, a opção pelos
pobres, tudo na maior desfaçatez. Traíram tudo aquilo. Hoje, a
Igreja está voltando a esse velho inimigo que eu tanto combato que é
o assistencialismo. Para combater essa situação, só se
resolve de um jeito - se não é ópio, é bala!"
O senhor defende uma revolução com guerrilha?
"Acho que só se faz revolução com um povo organizado,
desenvolvido politicamente. Eu nunca falei em revolução, porque
a revolução pressupõe um povo organizado. Além disso,
acho que quem tem que definir que tipo de revolução deve ser feita
é o próprio povo. É o povo do Iraque, por exemplo, que
deve dizer como derrubaria seu ditador, e não os terroristas americanos."
O senhor vê alguma relação entre Canudos e MST?
"Claro que há uma profunda identidade, embora o momento histórico
seja outro. Mas lá na Bahia, o MST não tem simpatia ao movimento
popular que nós fazemos. Lá o MST é amancebado da Igreja
Católica, essa Igreja que atacou o Antônio Conselheiro e que ataca
brutalmente o nosso trabalho, batizando quem eu já batizei só
para ganhar dinheiro. O MST representa essa busca, essa vontade humana de espaço.
E o espaço do camponês é a terra. Se você tirar a
terra do camponês, você o desestabiliza. Não é só
um elemento econômico - a terra para o camponês, para as grandes
massas deserdadas, faz parte da natureza humana..."
E quanto às invasões? O sr. acha lícito invadir propriedade
dos outros?
"Engraçado, a elite brasileira invadiu em 500 anos. A elite brasileira
sempre grilou terras. Então eu pergunto: porque o camponês não
pode ter terra? Se deputados, senadores, empresários podem invadir e
saquear em 500 anos, porque o camponês não pode invadir terras?
E mais: a grande maioria das invasões é feita em áreas
que o governo já comprou. Estas invasões são apenas a expressão
material de uma população humilhada, saqueada e que aprendeu com
os dominadores. Mas é claro que se você tem um terreno, conseguido
com seu trabalho, produz e vive com sua família neste terreno, é
claro que não tem sentido chegar um bocado de gente querendo tomar a
sua terra, comprada com tanto esforço. E se por acaso eles tomarem, o
governo deve repor os seus direitos."
O senhor também faz parte dos que acham que o governo Lula tem sido
moroso demais na questão da reforma agrária?
"Eu não sou analista político. Vivo lá no sertão
em apenas dois espaços - em reuniões com o povo ou na biblioteca.
Estar aqui em São José do Rio Pardo é um banho de civilização
que estou tendo, para usar uma expressão de Euclides. Eu vejo muita exploração
de pessoas, que foram militantes românticos, que combatem o governo. Eu
comparo o Brasil a uma casa destruída, com a maioria da família
doente e endividada lá fora - assim deixaram o Brasil. E esse presidente,
que vem do outro extremo, das origens operárias, das grandes lutas do
país, chegou ao poder. Mas como chegou ao poder? Rodeado de gatos, cachorros,
onças viciados em roubar, em se vender e agora têm que administrar.
Não sou filiado ao PT, mas também não sou idiota de apoiar
essa direita que estragou o país. Há muitos que dizem que o governo
deve romper com não sei o quê, deve fazer a reforma agrária
de tal jeito. Como são românticos! Não houve revolução
no país, o que houve foi apenas uma eleição."
A mídia costuma compara-lo a Antônio Conselheiro. Há exagero
nessa comparação?
"Seria bom se todo pastor ou padre fosse um Conselheiro, que estivesse
engajado justamente como Antônio Conselheiro na grande batalha para que
essa população tenha como viver livremente, sem a mão sangrenta
dos coronéis. Eu tenho uma profunda admiração por Antônio
Conselheiro, assim como tenho por Frei Caneca. Sou um admirador dos grandes
poetas de lutas, e não dos alienados e coniventes.
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